Jornal Povo

O trabalho duro dos que não têm trabalho

Expediente. Substantivo masculino. Serviço ou tarefa rotineira do dia a dia. O expediente diário do paulistano Fabrício da Silva Rodrigues, 35 anos, começa cedo. No início da manhã, antes mesmo do perfume do café se dissipar na casa dividida com a mãe em Guaianases, zona leste de São Paulo, ele começa a conferir os currículos a serem entregues, os destinatários e os endereços da jornada. 

Quando consegue ao menos R$30 para arcar com o PF do almoço e até quatro conduções, dependendo dos destinos, passa o dia na região central de São Paulo.

Na seca total, caminha por seu bairro e regiões próximas, conferindo respostas nos lugares visitados anteriormente e apresentando suas credenciais em novos estabelecimentos. À tarde, “quando aparece”, encaixa uma grana com bicos feitos para vizinhos e conhecidos. 

É enganosa a ideia de que desempregados não possuem expediente. Técnico de segurança do trabalho por formação, com mais de três anos de experiência na trajetória, Rodrigues está sem emprego há mais de um ano.

Apesar disso, ele, as outras personagens desta reportagem e a maioria dos 11,9 milhões de desempregados brasileiros trabalham duro no mais duro dos trabalhos: buscar recolocação sem sucumbir ao ataque devastador das adversidades financeiras, emocionais, físicas e psicológicas do período. Elas aniquilam impiedosamente o equilíbrio e a autoestima dos sem emprego.

“Procurei emprego em outros momentos do país. Jamais recebi tantos ‘nãos’ na vida. Estou certo de que isso ocorre com todos. A gente cria a expectativa e vem a frustração, recria a expectativa e vem nova frustração. Quem nunca esteve desempregado por longo período jamais terá ideia do quanto dói esse vai e vem”, conta o técnico Fabrício (assista acima ao vídeo com ele e outros sem emprego nesta reportagem).

Rodrigues mostra confiança. “Não bastasse, as contas se acumulam, falta dinheiro para as coisas básicas… Você se sente diminuído. Muitos se descontrolam ou desistem de procurar trabalho por isso. Se entregam. Mas, comigo, não. Há muita gente qualificada, até engenheiro, querendo entrar na minha área, mas vou me recolocar rapidamente.”

Os números do desemprego

O boletim da PNAD Contínua/IBGE divulgado em 27 de dezembro do ano passado informa que o Brasil tem 11,9 milhões de desempregados. Isso representa 11,2% dos 106,3 milhões da força de trabalho do país.

Se incluirmos os subocupados (em atividades abaixo da trajetória e formação e com salários menores) e desalentados (desistentes da procura por uma vaga), chegaremos a 31,3 milhões de afetados.

São números ainda incômodos, mas o desconforto já foi maior. O país vive desde 2014 a mais profunda e duradoura crise econômica de sua história, mas alguns indicadores apontam para o provável início da tão esperada e desejada recuperação.

Dos 12,6 milhões de desempregados existentes no trimestre entre junho e agosto de 2019, 702 mil, ou 5,6% do total, arrumaram ocupação (leia quadro nesta reportagem). Além disso, em 2019 houve aumento de 18,1% no número de empresas abertas em relação a 2018. E, mais importante, foi registrado o maior crescimento de novos negócios de pequeno, médio e grande porte, que geram empregos.

Apesar das novidades positivas, ainda há pela frente a missão inalienável de permitir um caminho para a suprema maioria desses 11,9 milhões de trabalhadores à margem do mercado. Um deles é o italiano Giuseppe Tagliabue, 37 anos, graduado em Mecatrônica em Milão, na Itália, e com larga experiência em instalação de sistemas eletrônicos, de segurança e TV por assinatura.Fora do mercado por ser qualificado

O furacão da crise atingiu Tagliabue e a mulher, brasileira, em cheio. Os dois estão desempregados há um tempo. Como empregado dedicado à tarefa de arrumar emprego, ele não perde o tempo que muitos ainda acham que lhe sobra. Diariamente, faz contatos telefônicos e envia entre 30 a 40 e-mails para endereços de vagas relacionadas à sua experiência.

Ao menos uma vez por semana, Tagliabue quebra a rotina para visitar empresas para entrevistas ou ir a agências de emprego da Barão de Itapetininga, a ‘Rua do Desempregado’, no centro de São Paulo. “Um selecionador disse que fui descartado por não ter experiência em sistemas de TV por assinatura. Foi o que mais fiz na vida e isso é o que está mais destacado em meu currículo, meu Deus.”

Tagliabue diz ter passado por situações curiosas nessa longa caça à vaga. “Me aconselharam, numa empresa, a retirar coisas do meu CV para não desconfiarem de que poderei ter ambições maiores ou pedir mais do que o planejado para o lugar. Ficou claro que fui punido por ser mais preparado do que o exigido para a vaga. Era o que faltava: ser castigado por saber fazer todo o trabalho pretendido e mais outras coisas. Quero somente trabalhar e viver em paz com minha mulher”, implora.

No aperto, Tagliabue candidatou-se a vagas em serviços básicos, incluindo alguns de limpeza. Sua mulher estava negociando um emprego com chance de sucesso, mas enfrentou um problema comum nessas situações. Sem dinheiro para se sustentar fora de casa, ela solicitou à empresa vale-refeição e dinheiro de passagem suficientes para os primeiros 20 dias de trabalho, até receber a primeira parcela de salário. O futuro patrão negou.

Após a entrevista, Tagliabue enviou uma mensagem à reportagem do R7. Estava preocupado com a ameaça de despejo imediato por falta de pagamento de aluguel que acabara de receber. Temia ser um sem-teto no dia marcado para receber a reportagem do portal em sua casa. Felizmente, conseguiu resolver o problema, ao menos temporariamente, dois dias depois.

Por todos esses desdobramentos, a dor verdadeira da desocupação, em suas reais dimensões, é quase sempre sentida sem alarde pelo desempregado, pois ele se sente diminuído, e até mesmo desonrado, em dividi-la com amigos e parentes.

Em muitos casos, como se todos os revezes não bastassem, o sem emprego ainda sofre com o preconceito dos que o acusam de corpo mole e incompetência proposital, por malandragem, na busca de recolocação. Ser ajudado financeiramente por pessoas próximas nem sempre é possível – e quando é, até pelas dúvidas, nem sempre existe disposição.

Com formas, dimensões e intensidades distintas, esses contextos incomodaram as paulistanas Maira Heloiza da Silva, 31, e Célia Reinoso, 39. Maira encerrou os trabalhos no último emprego há pouco mais de um ano. Cuidava de eventos e questões administrativas num restaurante paulistano. Antes disso, deu aula de idiomas, trabalhou em hotéis e, por um ano e meio, prestou serviços em navios, para duas multinacionais, em cruzeiros marítimos pela Europa e o Caribe.

Poliglota (além do português, fala inglês, espanhol, italiano e o básico de alemão), mas sem diploma de curso superior, Maira sofre as consequências de ser posicionada numa faixa profissional intermediária, criada no Brasil por um misto de preconceito, métodos ultrapassados e medo corporativo de concorrência profissional competente.

“Procuro oportunidades na internet e por meio de contatos antigos com disciplina”, diz Maira. “Nos últimos contatos, quem tinha emprego em entrada não fechou por me julgar qualificada demais para a vaga. E quem exigia formação superior me descartou por não ser graduada, mesmo tendo em mente que eu poderia desempenhar a função com eficiência igual ou até maior de que a de alguém com graduação”, explica.A formação que faz falta

Canudo não é problema para Célia. Formada em administração de empresas, com cursos de aperfeiçoamento e especialização no currículo, fez uma carreira marcada por reconhecimento e elogios em duas multinacionais, uma americana e outra francesa. Inquieta, ingressou, aos 30 anos, no universo da internet, como integrante de times de operação de grandes sites nacionais e internacionais de compras e vendas coletivas.

Em 2015, justamente no período em que o aperto econômico se consolidou e passou a tomar conta do pedaço, Célia sentiu necessidade de promover um intervalo na carreira para dar suporte ao pai, que ficara doente.

Com a morte do pai, em 2016, ela decidiu tentar a recolocação, mas a crise apresentou uma fatura alta. “Adoro me aprimorar em tecnologia. Em nenhum momento, inclusive durante a retirada, deixei de me atualizar. Só que, com o arrocho, as vagas para profissionais qualificados sumiram do mapa. O que mais ouvia, na certa por desconfiança pela pausa, era coisa do tipo ‘não há nada que te desqualifique ou desabone, mas escolhemos outra pessoa’. Comecei a questionar até se estava velha para o mercado aos trinta e poucos anos”, conta.

Apesar da procura, as oportunidades de entrevista e avaliações foram ficando raras. Pragmática, Célia não desistiu de voltar ao mercado, mas tomou decisões de vida importantes. Solteira e sem filhos, aplicou as economias num investimento, para se manter, e virou integrante de um projeto de trabalho voluntário com crianças carentes.

Ela continua aberta a conversas para recolocar seu talento no mercado. “Alguém pode imaginar que, profissionalmente, estou atualmente entre o desemprego e o desalento, mas não é isso. Não vou ficar chorando em casa como se a vida fosse apenas essa questão. Descobri no trabalho social uma forma de manter o equilíbrio e não pirar. Sou feliz com ele. Minha vida vai seguir com esses eixos”, projeta a administradora. 

Só conhece a dor quem tem o espinho no pé. Um desempregado sabe disso mais e melhor do que qualquer um. Que a economia vença a guerra contra a crise no menor período de tempo possível. E ajude Fabrício, Giuseppe, Maira, Célia e os demais 11,9 milhões de sem emprego a retirar da carne esse espinho doloroso do tormento.

Fonte: R7