Jornal Povo

Pacientes que usam canabidiol vão à Justiça por terem dados expostos pela Anvisa

RIO — Uma paciente com aproximadamente 70 anos, que faz tratamento com medicamento à base de canabidiol, tem vivido dias de angústia desde que o seu e-mail foi incluído numa lista de 1.900 pessoas que tiveram seus endereços eletrônicos divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Ao enviar uma mensagem para o grupo de pacientes e para empresas do setor sem usar a cópia oculta, a Anvisa acabou compartilhando os endereços eletrônicos de todos eles.

A mulher, cuja identidade foi preservada, diz que a família não sabe sobre a doença e teme que a informação seja usada para uma possível interdição judicial. O relato foi feito a um psiquiatra que prescreve o canabidiol aos seus pacientes.

Após o vazamento dos dados, o advogado Emílio Figueiredo, diretor do coletivo Reforma, disse que vai entrar uma ação de reparação de danos morais contra a Anvisa, com a base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, da 13.709 de 2018.

— A divulgação dos e-mails está causando uma série de prejuízos a pacientes. Por meio do endereço, é possível identificar os pacientes que fazem tratamento. Muitos deles não expõe nem para familiares que usam os produtos. Na lista, tem e-mails profissionais das pessoas. Duas associações que representam pacientes estão se organizando para entrar coma ação — explicou Emílio.

Segundo a psiquiatra Eliane Nunes, diretora-geral da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis, o erro afetou pacientes que entraram com o pedido para importação de produtos à base de canabidiol em janeiro de 2020 e também aos que estavam o prazo prestes a expirar.

— Acho que é muito grave o vazamento desse e-mail. Nessa lista de destinatários tem pessoas que estão em condições muito diferentes. Para algumas, é muito tranquilo assumir que fazem uso de medicamentos à base de cannabis. Para outras, pode não ser. Não é certo a gente tirar como parâmetro a nossa condição individual para avaliar a situação dos outros — afirma.

A médica ressalta que os direitos que a privacidade é um direito universal e precisa ser preservada.

— Para algumas pessoas ter o nome exposto como usuário desse tipo de medicamento pode prejudicar relações familiares ou profissionais. Legalmente, ninguém pode ser prejudicado por usar esse medicamento, mas por fora da lei as pessoas podem ser preteridas num trabalho, e assim por diante. Até se provar que houve uma discriminação ilegal, o prejuízo pode ser grande — analisa a psiquiatra.

Para alguns pacientes, os transtornos já começaram. Alguns deles viram os seus endereços em um e-mail respondido pela empresa HempMeds para a Anvisa.   Os pacientes temem que a empresa inclua os endereços da mala direta de empresas.

Em nota, a HempMeds informa  que não realizou nenhum tipo de intervenção na lista de destinatários incluídos pela Anvisa no e-mail enviado a pacientes e empresas do setor.

“A empresa assegura que não fez e não fará uso da lista de destinatários tornada pública pela agência reguladora, e reforça que segue rigorosamente todas as normas legais e os mais altos padrões éticos no que diz respeito à proteção de dados de seus pacientes. A base de relacionamento da HempMeds é formada exclusivamente por pessoas que cederam suas informações de contato diretamente à empresa, de maneira voluntária, e aceitaram receber informações e comunicações da companhia”, diz a nota.

Mãe de paciente considera falta de ética

Associação Brasileira para Cannabis (Abracannabis) é uma das que entrarão na Justiça. Lauro Pontes, coordenador executivo, disse que o vazamento dos e-mails tem causado problemas emocionais em várias pessoas:

— Além do efeito emocional e moral produzido em pessoas que são enfermas e se sentiram expostas, independentemente  da doença associada, são milhares de nomes que foram disparados em um e-mail sem cópia oculta. Isso fez cada usuário receber pelo menos 700 outros endereços de email na faixa da letra do seu nome. Eu recebi todos de L até o final do M, expondo os dados (nome e e-mail). É uma coisa grave. Há ainda muito preconceito sobre o tema. Muitos pacientes ainda estão “saindo do armário” sobre a maconha — diz Pontes, que é doutor em Psicologia, professor universitário e também coordenador de pós-graduação sobre sistema endocanabinóide e também paciente medicinal.

—  Sempre tive muita ansiedade e insônia. Desde 2014, quando mudei meu tema do doutorado para maconha, eu me tornei paciente medicinal. Em 2018, consegui a autorização para importação — conta.

Entre as pessoas que se sentiram lesadas está Cristiane Gimenez Palacios, mãe de uma menina que faz uso do óleo de cannabis.

— É revoltante esse descaso, falta de ética. Qualquer profissional atualizado sabe que não se pode compartilhar e-mail desta forma. O envio deveria ser individual ou com cópia oculta no caso de envio coletivo — reclamou Cristiane, que ficou bastante assustada ao ver os dados da filha sendo compartilhados com cerca de 500 endereços de e-mails.

Anvisa diz que não passou dados sigilosos

Em nota, a Anvisa informou que a mensagem eletrônica enviada aos pacientes compõe um conjunto de ações de comunicação da ampliação do conhecimento sobre a extensão da validade da Autorização de Importação de produtos à base de canabidiol.

No mesmo comunicado, a agência minimizou os danos:“Neste contexto, foi encaminhado conteúdo meramente informativo, que não contempla informação sigilosa. As novas estratégias de comunicação permitirão que um maior número de pessoas tenham conhecimento da simplificação adotada para garantir o direito à saúde do cidadão.”

No dia 22 de janeiro, a Anvisa simplificou a regulamentação de importação de medicamentos à base de canabidiol. Os diretores decidiram que os pacientes  só precisam apresentem a prescrição médica na solicitação à Anvisa para receberem autorização para trazer o medicamento do exterior.


O prazo de vigência da autorização também foi estendido — de um ano para dois —, e os pacientes não precisam informar no momento do pedido a quantidade que será importada.

Em dezembro, após longa discussão, a Anvisa aprovou a autorização de registro de medicamentos feitos com cannabis, mas rejeitou o plantio de maconha por empresas. No Brasil, são 9.540 pacientes autorizados a fazer a importação do medicamento.

Fonte: O Globo