Jornal Povo

Mangueira defende o título no terceiro desfile da noite, que reconstrói imagem de Cristo

Para pregar a tolerância em seu enredo sobre a vida e a morte de Jesus Cristo readaptadas aos dias atuais, a Mangueira leva para Sapucaí neste domingo uma alegoria em que aparecem crucificados um homem negro, um indígena, uma mulher e um representante da população LGBT. O carro, batizado de “O Calvário” pelo carnavalesco Leandro Vieira, contém uma cruz de 10 metros na qual está pregada a escultura de um homem de cor preta. Acima dele, a inscrição “Negro” substitui “INRI”, grafada na cruz em que Cristo foi morto. Ao redor, há cruzes menores em que estão os outros personagens, representados por pessoas. À frente da escola, líderes religiosos desfilaram, representando a união das crenças.

— Hoje Jesus vem de todas as formas — afirmou o carnavalesco Leandro Vieira, pouco antes do início do desfile.

A alegoria foi a última a ser finalizada no barracão da Mangueira, na Zona Portuária do Rio. Para evitar polêmicas antecipadas e driblar uma eventual tentativa de censura por parte de grupos religiosos, Leandro Vieira deixou para incluir a escultura do homem negro no carro somente na semana que passou. Os testes da estrutura, que se levanta durante a passagem pelo Sambódromo, também ocorreram em segredo: os traços da escultura, que difere da representação pela qual se conhece Jesus comumente, foram ocultados por plásticos pretos quando os treinos aconteciam na área externa ao barracão.

Comissão de frente tem ‘dura’ da polícia a apóstolos e Jesus

A comissão de frente da Mangueira entrou levando o setor 1 da arquibancada da Marquês de Sapucaí ao delírio: ao som de batida de funk, bailarinos fazem uma coreografia de passinho e montam uma enorme maquete de favela. Sobre a estrutura, o bailarino Arthur Morsch é destaque, caracterizado de Jesus Cristo.

Num segundo momento, a Santa Ceia é encenada. Logo depois, aparecem policiais que batem e revistam os apóstolos e o próprio Jesus

Baianas representam orixás crucificados

As baianas da Mangueira entram na Avenida representando orixás crucificados. Uma delas, Ingrid Gama, moradora do Cerro Corá, é umbandista. E estava chorando emocionada na concentração.

— É fundamental conseguir falar de Jesus e orixás num mundo tão preconceituoso, onde muitos aboninam as religiões de matriz africana. Estou aqui vestida de orixá diante do pastor Henrique Vieira, que representará um dos Jesus da escola. Isso é muito significativo.

Rainha de bateria não samba na Avenida

Pouco antes do desfile, a rainha de bateria Evelyn Bastos surpreendeu ao revelar que não sambaria. Ela lamentou que a dança do samba ainda seja vista por muitos como algo ligado à sexualidade, e disse que é o maior desafio de sua vida.

— Quero muito passar uma mensagem de amor, de que Jesus pode estar em todos os lugares, todos os gêneros, para que a gente possa lutar contra o machismo, contra a objetificação da mulher, de uma rainha de bateria… hoje eu vou ocultar a dança do samba, porque infelizmente nossa dança, nosso samba, ainda é visto como algo sexual — disse.

Evelyn Bastos, rainha de bateria da Mangueira: 'tapada' com roupa, ela revelou antes do desfile que não sambaria
Evelyn Bastos, rainha de bateria da Mangueira: ‘tapada’ com roupa, ela revelou antes do desfile que não sambaria Foto: Ricardo Rigel

Carnavalesco escondeu até o último minuto segredo sobre fantasia de mestre-sala e porta-bandeira

Para evitar que a surpresa viesse a público antes da hora exata, o carnavalesco Leandro Vieira escondeu até dos jurados da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) quais seriam as referências religiosas representadas nas fantasias do casal de mestre-sala e porta-bandeira da Mangueira. Matheus Olivério e Squel Jorgea, que defendem o pavilhão da verde e rosa juntos pelo quinto ano consecutivo, representam Jesus e a própria Mangueira. Ele, de dreads e coroa de espinhos no cabelo, corteja ela, toda trabalhada no verde e rosa.

No roteiro entregue aos avaliadores e à imprensa na semana que antecedeu a apresentação, Vieira escreveu o nome da fantasia apenas como “Imagem poética”. Ao justificar a escolha, como carnavalescos precisam fazer em relação a todos os figurinos e alegorias, o artista se limitou a dizer que o casal representaria “uma imagem poética pertinente ao enredo”. Não houve também a inclusão dos croquis das roupas, como aconteceu em relação às alas. Tudo para garantir que segredo permanecesse guardado até a entrada da Estação Primeira no Setor 1.

Essa não é a primeira vez que Leandro aposta em Matheus e Squel como fator surpresa do carnaval da Mangueira. Em 2016, no campeonato conquistado com uma homenagem à cantora Maria Bethânia, a porta-bandeira desfilou careca representando uma Yaô (fiel feminina recém-iniciada no Candomblé). A caracterização só foi descoberta quando a dançarina entrou no Sambódromo do Rio após ter ficado escondida na concentração da Avenida Presidente Vargas. Do momento da revelação em diante, ela se transformou na imagem daquele Carnaval.

Fonte: Jornal Extra