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Coronavírus pode usar tática similar à da dengue para sabotar sistema imune

SÃO PAULO – Um artifício usado pelo vírus da dengue para sabotar o sistema imune das pessoas pode estar ocorrendo também com o novo coronavírus nos casos da doença que se agravam mais. Chamado de ADE (potenciação dependente de anticorpos, na sigla inglês) esse mecanismo é uma espécie de ‘tiro pela culatra’, produzindo uma reação que não só é ineficaz contra o patógeno mas também enfraquece a imunidade dos pacientes. 

A ADE começou a ser considerada por cientistas como possível explicação para a grande variação no nível de severidade da doença, com muitos infectados apresentando sintomas leves e alguns evoluindo subitamente para quadros muito graves.

Em estudo publicado em fevereiro na revista científica Microbes and Infection, o cientista Jason Tetro, da Universidade de Guelph, no Canadá, propôs a ideia. A ADE é essencialmente um problema na ação dos anticorpos — complexos de proteínas que o sistema imune faz para atacar vírus e bactérias. 

Segundo Tetro, talvez a taxa de casos severos fosse maior na China do que em outros países porque os cidadãos da área seriam mais vulneráveis à ADE, pois ela só é desencadeada por um vírus quando uma pessoa já contraiu algum outro similar.

Se pessoas da região já tivessem sido infectadas por corovírus inócuos aparentados ao SARS-CoV-2, causador da Covid-19, o sistema imune delas poderia presumir que já possuía anticorpos adequados para combater o novo patógeno. Esses anticorpos, porém, não seriam capazes de neutralizar o vírus quando se ligam a ele. E pior, ajudariam o vírus a ganhar entrada para células do próprio sistema imune, fazendo baixar a guarda das defesas do corpo. 

Isso é exatamente o que acontece em alguns casos de dengue hemorrágica, a manifestação mais grave da doença. A imunidade contra um subtipo do vírus atrapalha a defesa contra outro subtipo, posteriormente, provocando hemorragias e matando algumas vítimas. Os casos severos de Covid-19, apesar de esta ser uma doença pulmonar, também tinham um sinal típico do fenômeno que Jetro estava descrevendo.

Ajudando o Inimigo Foto: Criação/O Globo

“A ADE prejudica a habilidade de se lidar com a inflamação no pulmão e outros órgãos”, escreveu o pesquisador. “Isso pode levar a lesões respiratórias agudas, síndrome de estresse respiratório agudo e outras sequelas derivadas de inflamações documentadas em muitos casos de Covid-19 severa.” 

Em março, porém, a pandemia cresceu, e ficou claro que Tetro estava errado sobre uma coisa: a ADE, caso esteja ocorrendo, não é um problema exclusivo da China. A gama variada de quadros clínicos, com alguns pacientes sofrendo pioras súbitas, foi observada em todos os países onde a epidemia já tinha ganho uma dimensão maior. 

Caso algum vírus desconhecido esteja provocando o sistema imune das pessoas a reagir de maneira inadequada contra a Covid-19, não é um micróbio que esteja só na Ásia. 

Candidatos não faltam, já que se conhece outros coronavírus causadores de sintomas de resfriado circulando globalmente. Apesar de a história fazer sentido, porém, alguns cientistas acreditam que é cedo demais para embarcar na hipótese da ADE. 

“Fora das famílias sorotípicas do vírus da dengue, onde se demonstrou ADE em experimentos com animais, a observação de ADE com vírus sob níveis de anticorpos incapazes de neutralização está restrita a experimentos in vitro“, afirmou Anuj Sharma, patologista da Uniformed Services University, de Maryland, em artigo de resposta a Tetro, sugerindo que o fenômeno deveria ser restrito a tubos de ensaio.

Outros cientistas dizem estar se mantendo ainda em alerta para essa possibilidade, porém. Um estudo que emitiu um sinal favorável à hipótese de Tetro saiu poucos dias antes de seu próprio trabalho, e atestava que o vírus da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), um patógeno aparentado com o da Covid-19, era suscetível a provocar ADE, com alguns tipos de anticorpos. 

“O mecanismo que nós identificamos in vitro para ADE com a MERS pode explicar a ADE observada in vivo com outros coronavírus, como o da SARS e outros que infectam felinos”, escreveu o líder da pesquisa, Yushun Wan, da Universidade de Minnesota, em estudo no Journal of Virology

Preocupação com vacinas

Wan não estava se referindo a mecanismos provocados por infecções prévias de vírus aparentados, como Tetro sugeria, mas sim a algumas tentativas fracassadas de se criar vacinas para a SARS, que resultaram em problemas de ADE. Vacinas pouco específicas, como se viu em alguns testes, também podem provocar o sistema imune a criar anticorpos que ajudam o vírus, e vez de detê-lo. 

“Fiquei muito impressionada com o estudo de Wan”, comentou Martine Denis, do Laboratório Clínico de Virologia Epidemiológica, na Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, em uma plataforma de discussão acadêmica. “Fico imaginando se essas observações não estariam relacionadas com o fato de a Covid-19 parecer uma doença leve em crianças menores de dez anos.” 

Com imunidade mais fraca e menos experimentada que adultos, crianças teriam propensão menor a ter confusão na memória do sistema imune. 

Imunologistas brasileiros consultados pelo GLOBO indicam que ainda não há consenso sobre a teoria da ADE. 

— Essa reação é muito bem estabelecida no caso da dengue. Quanto à Covid-19, ainda não temos nenhuma evidência comprovada para dizer que está relacionada à severidade da doença — afirma Karina Bortolucci, professora da Unifesp. 

Ana Maria Caetano Faria, da UFMG, tem opinião diferente. 

— A ADE pode ocorrer na Covid-19 também. Por esse motivo, o mapeamento dos anticorpos neutralizantes no plasma dos pacientes que sobrevieram à doença é importante — diz.

A despeito da sugestão da ADE como mecanismo para explicar a severidade da doença, muitos cientistas estão preocupados mesmo é com o problema que ela pode causar para a pesquisa de vacinas. Um novo imunizante pouco específico poderia agravar uma infecção, em vez de detê-la, dizem. E o mesmo vale para as pesquisas que usam plasma de pacientes convalescentes para tratar doentes graves. 

Darrel Ricke e Robert Malone, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), publicaram um estudo preliminar mapeando possíveis subterfúgios usados pelo vírus.

“Considerando dados anteriores sobre múltiplos esforços de vacina para a SARS e a MERS que falharam por causa da ADE em experimentos com animais, é razoável presumir um risco similar para a ADE nos esforços de vacina da Covid-19”, escrevem. “Isso, claro, se as vacinas não mirarem domínios (*regiões específicas de moléculas virais*) que bloqueiem a fusão do vírus com células do sistema imune.”

Fonte: O Globo