Jornal Povo

Sergio Vieira de Mello e Carolina Larriera: a história de amor que une Brasil, Argentina e o Botafogo

Minutos antes de convidados chegarem para um jantar entre membros da ONU, que chegavam em momento de tensão num Timor-Leste em busca da independência, e ativistas guerrilheiros do pequeno país asiático, um brasileiro e uma argentina riam sem parar. A cena provocou olhares curiosos.

– Desde que a gente não fale de futebol, a gente pode se entender.

A frase é de Sergio Vieira de Mello, alto comissário da ONU, para Carolina Larriera, economista que fazia parte da missão diplomática. Ela não aparece nem nos livros sobre o brasileiro morto em 2003 em atentado a bomba em Bagdá (Iraque), muito menos em documentário ou na série da Netflix “Sergio”, sucesso na plataforma de streaming com Wagner Moura na pele do brasileiro.

Ali, despretensiosamente, a rivalidade entre o futebol brasileiro e argentino virou pano de fundo de uma história de amor. Definido como “Pelé da democracia” depois de sucesso no trabalho no Timor-Leste, Sergio não era apenas capaz de cativar forças revolucionárias até encontrar ponto pacífico num país.

– Sergio era botafoguense. Acompanhou a época que o Botafogo tinha esse brilho de Garrincha, que era um grande herói para ele. Por extensão virei também torcedora do Botafogo. Mesmo distante a gente acompanhava jogo do Botafogo pelo rádio – contou Carolina Larriera.

No Arpoador, canto preferido de Sergio na cidade, o casal aproveitava a praia do Rio de Janeiro — Foto: Arquivo pessoal
No Arpoador, canto preferido de Sergio na cidade, o casal aproveitava a praia do Rio de Janeiro — Foto: Arquivo pessoal
Sergio com a bola de futebol e a camisa do Brasil: o diplomata tinha coleção de camisas com referência ao país, que usava em horas de lazer — Foto: Arquivo pessoal
Sergio com a bola de futebol e a camisa do Brasil: o diplomata tinha coleção de camisas com referência ao país, que usava em horas de lazer — Foto: Arquivo pessoal
Sempre sorridente, Sergio na casa de Buenos Aires, onde morou até os dois anos — Foto: Arquivo pessoal
Sempre sorridente, Sergio na casa de Buenos Aires, onde morou até os dois anos — Foto: Arquivo pessoal

Nascido no Rio em 1948, Sergio, filho de um diplomata e uma professora, viveu na Argentina, na Itália e até no Líbano antes de retornar à cidade natal e viver a era de ouro do Alvinegro com Garrincha no início dos anos 1960. Na carreira de mais de 30 anos na ONU, levou a paixão pelo Alvinegro mundo afora, mesmo que tivesse que procurar nas ondas da rádio uma transmissão dos jogos, como contou Carolina. Ela, formada em Economia em Nova York e por Harvard, nascida em Bahía Blanca (província de Buenos Aires), torce para o River – e já vivia a rivalidade em casa com o irmão que é Boca Juniors.

Além do Alvinegro e do “Millionarios”, o casal se unia para torcer pela seleção de seus países. Quando jogava o Brasil, os dois vibravam como dois brasileiros. Pela Argentina, Sergio vestia azul e branco para apoiar os vizinhos sul-americanos, adversários históricos da “canarinha”.

Foto de Carolina em Buenos Aires, na casa que Sergio morou quando era criança, na rua Vicente Lopez, no bairro Recoleta: "Ele voltou para Buenos Aires com 20 dias, mas nasceu no Rio. Gilda queria que nascesse no Brasil" — Foto: Arquivo pessoal
Foto de Carolina em Buenos Aires, na casa que Sergio morou quando era criança, na rua Vicente Lopez, no bairro Recoleta: “Ele voltou para Buenos Aires com 20 dias, mas nasceu no Rio. Gilda queria que nascesse no Brasil” — Foto: Arquivo pessoal

Camisa do Botafogo na mala e nas corridas

A relação dos dois, que começou no Timor-Leste, em 1999, passou por missões diplomáticas e viagens ao redor do mundo. Carolina lembra que, apesar de todas questões que envolviam a responsabilidade dos dois na ONU, a leveza, o bom humor de Sergio e o futebol sempre estiveram presentes – com as expressões que vieram do jogo popular e são usadas no dia a dia de um brasileiro (e do sul-americano de maneira geral).

– O filme tem roteiro estrangeiro. O livro “O homem que queria salvar o mundo” é de uma americana (Samantha Power). Perdem essas pequenas sutilezas que eu acho que são importantes para compreender a cumplicidade das pessoas. Se você não explica essa parte do futebol entre a gente você perde uma parte importante para entender porque nos entendíamos tão bem. Nosso amor foi tão forte porque tinha essa cumplicidade, definitivamente. Esporte era grande parte da nossa vida – lembra Carolina, hoje co-diretora do Centro Sergio Vieira de Mello junto com a mãe de Sergio.

Ainda no primeiro contato com Sergio, Carolina até defendeu Maradona, um personagem que não lhe agrada muito. Parte dessa amistosa conversa é retratada no filme da “Netflix”, mas sem menção à piada interna que causou risos e impressionou outros convidados.

– Eu tinha chegado cedo a um jantar e ele era sempre pontualíssimo. Começamos a conversar, nos apresentamos e quando eu falei que era argentina ele jogou a piada. Disse algo como: “desde que a gente não fale de futebol a gente pode se entender”. Eu falei: “lógico, desde que você saiba claramente que o melhor time do mundo é a Argentina”. E aí começamos a brincar, ele falou “não tenho tanta certeza”, “mas você sabe que Deus é brasileiro”, essas coisas. Falamos essas coisas óbvias, de Pelé, de Maradona, de quem era o melhor. E foi muito engraçado porque eu não gosto do Maradona. Mas no contexto da piada eu tinha que defendê-lo – contou Carolina.

No Timor-Leste, no jantar de despedida com o presidente eleito Xanana Gusmão. Pelo trabalho realizado no país asiático, o jurista José Ramos Horta, Prêmio Nobel da Paz de 1996 e presidente entre 2007 e 2012 daquele país, chamou Sergio de "Pelé da democracia" — Foto: Arquivo pessoal
No Timor-Leste, no jantar de despedida com o presidente eleito Xanana Gusmão. Pelo trabalho realizado no país asiático, o jurista José Ramos Horta, Prêmio Nobel da Paz de 1996 e presidente entre 2007 e 2012 daquele país, chamou Sergio de “Pelé da democracia” — Foto: Arquivo pessoal

No Camboja, viram título mundial do Brasil

O atentado que matou Sergio Vieira de Mello e mais 21 pessoas de sua equipe da ONU em Bagdá interrompeu uma história que Carolina cumpre no Rio de Janeiro. O cantinho de Ipanema, a pedra do Arpoador, ganhou uma argentina que se encantou pelas areias do Rio. Ela mora na cidade desde a morte de Sergio, quando deixou a ONU. O corpo do diplomata foi enterrado na Suíça, o que desagradou a mãe do brasileiro. Ela queria o corpo do filho no Rio.

Um ano antes dessa tragédia os dois estavam na Camboja. Viajavam de férias pela Ásia depois de deixar o Timor-Leste, mas conseguiam intervalos para assistir aos jogos da Copa do Mundo da Coreia do Sul e do Japão. Na torcida pelas duas seleções. Um café, que servia de ponto de encontro de jornalistas de todo o mundo, recebeu a dupla bem cedo para pegar o melhor lugar, na frente da TV.

Após o fim da missão no Timor-Leste, Carolina e Sergio tiraram férias em viagem pela Ásia. Lá, assistiram jogos da Copa. Na imagem, Chiang Rai, na Tailândia — Foto: Arquivo pessoal
Após o fim da missão no Timor-Leste, Carolina e Sergio tiraram férias em viagem pela Ásia. Lá, assistiram jogos da Copa. Na imagem, Chiang Rai, na Tailândia — Foto: Arquivo pessoal

– Chegamos quatro horas mais cedo para pegar a melhor poltrona e assistir ao jogo pela TV. Esse lugar virou ponto de encontro até para os brasileiros. Torcemos muito pelo Brasil. Quando era jogo do Brasil eu torcia pelo Brasil, quando era Argentina, ele torcia comigo. E era assim pelo River Plate e é assim pelo Botafogo, que eu continuo torcendo – disse ela, que ganhou aliado até para brincar com um colega inglês de Sergio.

– Sergio tinha um braço direito dele na ONU que era um inglês. E a Argentina tem a rivalidade com a Inglaterra por causa das ilhas Malvinas. Num jogo que assistimos a Argentina ganhou. O Sergio pegou o telefone, ligou para esse assistente inglês para brincar. Ele não estava nem aí para o jogo, mas teve que ouvir a piada do Sergio.

Livro a caminho

Carolina passou as últimas semanas trabalhando para finalizar um livro em que expõe a sua versão sobre o episódio – sempre se mostrou crítica às condições de segurança oferecidas pela ONU em Bagdá e na tentativa de resgate – e conta mais sobre sua vida e a relação com Sergio Vieira de Mello. Narra os planos executados no trabalho na ONU, mas também conta sobre uma decepção.

– O filme às vezes insinua, mas verdadeiramente não conta. Depois que o Sergio morreu ocorreram série de situações muito dolorosas, muito frias, incríveis, realmente. Pelas quais eu venho batalhando todos esses anos. Ele torcia comigo pelo meu time, eu torcia pelo dele, mas no fundo a gente torcia para o mesmo lugar. Para nossos países, que, na verdade, eram a mesma coisa. A nossa cultura é muito similar – disse Carolina.

Em 2017, depois de longo processo judicial, ela contou com apoio da mãe de Sergio para ter reconhecido na Justiça do Rio a união civil com o diplomata.

– Minha luta foi respaldada pela Justiça brasileira, mas, inacreditavelmente, a ONU, que era meu empregador, tem sido parcial. Não tem me reconhecido nem como estafe oficial da ONU, como eu era, nem como sobrevivente, nem como esposa de Sergio – lembrou.

Com uma das muitas camisas do Brasil que usava, Sergio ainda em Timor-Leste, numa corrida pelas ruas. Dias antes de morrer, mostrava preocupação, mas confiança em entrevista ao Jornal do Brasil: "Bato três vezes na madeira. E tenho dois coletes à prova de balas. Sou um funcionário das Nações Unidas e Deus é brasileiro" — Foto: Arquivo pessoal
Com uma das muitas camisas do Brasil que usava, Sergio ainda em Timor-Leste, numa corrida pelas ruas. Dias antes de morrer, mostrava preocupação, mas confiança em entrevista ao Jornal do Brasil: “Bato três vezes na madeira. E tenho dois coletes à prova de balas. Sou um funcionário das Nações Unidas e Deus é brasileiro” — Foto: Arquivo pessoal

Fonte: GloboEsporte