Jornal Povo

Moradores das favelas do Rio perdem vizinhos e parentes todo dia para o coronavírus: números de mortes assustam

Nesta sexta-feira, o Estado do Rio passou das cinco mil mortes pelo novo coronavírus. De quinta para sexta-feira, foram 223 a mais, chegando a 5.079. De acordo com este último boletim da Secretaria estadual de Saúde, os casos chegaram a 47.953. Na capital, eram 25.974 infectados na noite de ontem, com 3.293 óbitos. São números que representam praticamente o dobro do registrado há duas semanas: no dia 14 de maio, o estado tinha 19.467 casos e 2.247 mortes pela Covid-19; o município do Rio, 11.264 e 1.509, respectivamente. Essa tragédia representada por estatísticas atinge também as favelas do Rio, onde soma-se a esses dados toda a dificuldade de viver à margem da sociedade.

De acordo com levantamentos feito por lideranças comunitárias de 13 comunidades do município do Rio junto a clínicas de saúde, estima-se que o número de mortos nas favelas em decorrência do novo coronavírus passou de 129, no último dia 14, a 254, nesta sexta-feira. São elas: Rocinha, Maré, Jacaré, Jacarezinho, Manguinhos, Complexo do Alemão, Cidade de Deus, Mangueira, Acari, Vidigal, Providência, Vila Kennedy e Pavão-Pavãozinho-Cantagalo. Os dados alertam para a possível subnotificação nesses lugares. Para estudiosos, líderes comunitários, ativistas e moradores, o número é ainda maior, podendo chegar a cinco vezes mais do que é divulgado.

Moradora da Rocinha — favela carioca mais atingida: nesta sexta-feira, eram 206 casos e 55 mortes —, a manicure Fabiola Mariano, de 35 anos, perdeu três parentes, um casal de tios e um primo, em menos de dois meses. Fabiola, que ainda não fez testagem para a doença (a UPA da comunidade não faz o exame), conta que também sentiu os sintomas.

— No fim de março, meu tio passou mal, foi para a UPA e diagnosticaram pneumonia. Voltou para casa e, dois dias depois, com muita falta de ar, precisou ser levado para o CER (Coordenação de Emergência Regional) Leblon e morreu. Como ele não fez o exame da doença, não sabemos se ele realmente foi vítima da Covid. Na mesma época, meu primo ficou doente, e a UPA disse que era dengue. Por duas semanas, ele ficou muito debilitado. Só após a morte do meu tio que ele foi à UPA de Copacabana e descobriram que ele estava com a doença — lembra.

A manicure Faiola conta que perdeu três parentes para a Covid-19
A manicure Faiola conta que perdeu três parentes para a Covid-19 Foto: Domingos Peixoto

Segundo Fabiola, após ser diagnosticado com o coronavírus, seu primo foi encaminhado para o Hospital do Cérebro, no Centro. Três dias após ficar entubado, ele não resistiu e morreu. Era 16 de abril. Um mês depois, a mãe do rapaz também morreu.

— Uma prima também foi contaminada, mas graças a Deus se curou. Como isso tudo acontece e não tem testagem, acredito que muita gente deve ter sido contaminada. Eu, por exemplo, fiquei 22 dias muito mal. Por um mês fiquei sem paladar e sem olfato, mas não fiz o exame — conta Fabiola, que completa: — Conheço muita gente, umas 20, que morreram com sintomas da doença. Acho que todas deveriam ter sido testadas. A gente ficaria menos preocupada.

Moradora da Rocinha há mais de 30 anos, numa localidade conhecida como Pernambuco, a dona de casa Maria Iva Quirino dos Santos, de 56, conta que já perdeu cinco amigos e vizinhos. Todos com sintomas da doença.

— O último caso aconteceu há duas semanas. Meu vizinho, um pedreiro novo, de poucos mais de 30 anos, estava contaminado e só descobriu quando deu entrada em estado grave num hospital de Niterói. Ele teve que sair daqui para ser diagnosticado lá do outro lado da Ponte (Rio-Niterói). Ficou três dias internado e morreu. Em seguida, a família dele toda descobriu que também estava com a doença. É uma situação muito triste — diz Maria, que completa: — Eu moro com minha neta de 10 anos e meu marido. Meu maior medo é ser infectada e deixar a minha neta. Perdi muitos amigos e vizinhos e vejo isso acontecendo todo dia. Eu lamento muito pelo que está acontecendo, porque muita gente não está se importando. Quando vejo meus amigos indo embora, sendo vencidos pela doença, dói na alma. É muito triste ver isso tudo acontecendo na porta da gente.

Uma das entradas da Favela da Rocinha, na Zona Sul, nesta sexta-feira
Uma das entradas da Favela da Rocinha, na Zona Sul, nesta sexta-feira Foto: Domingos Peixoto

Diferença nos números oficiais

Das 13 favelas que estão no levantamento popular, duas não constam no boletim oficial: Pavão-Pavãozinho-Cantagalo e Providência. Nas 11 que estão na lista e também na conta comunitária, a Prefeitura contabilizava ontem 190 mortes — a lista do município inclui ainda Caju, Vasco da Gama, Lins de Vasconcelos e Vigário Geral; essas quatro, na noite desta sexta-feira, somavam 35 óbitos.

De acordo com os organizadores do levantamento independente, um outro motivo para a diferença nas estatísticas se dá por uma possível falha no sistema oficial: vítimas que moram em comunidades estariam sendo registradas como moradoras de bairros vizinhos.

O painel Covid-19 nas Favelas, criado pelo jornal “Voz das comunidades”, fundado por René Silva, morador do Complexo do Alemão, acompanha os dados das 13 favelas consolidando não só notificações da prefeitura e do governo estadual, mas registros de clínicas da família das regiões onde ficam essas comunidades.

— As clínicas da família têm dados mais precisos, já que atuam naqueles territórios. No entanto, acreditamos que esse número de 254 mortos nas favelas seja muito maior. Infelizmente, só conseguimos compilar dados de poucas comunidades. Como o Rio tem dezenas e dezenas de favelas, esse número é muito superior — destaca René Silva, que completa: — O que temos observado é que os números contabilizados pela prefeitura não reflete o que de fato está acontecendo nessas regiões.

Já o painel #CoronaNasFavelas, do coletivo Frente Maré, organiza dados de 17 favelas ouvindo principalmente moradores desses lugares: a conta deles chega a 296 mortes nos lugares em que atuam.

Favelas somam quase 1,5 milhão de pessoas

Segundo dados oficiais do último Censo, de 2010, existem 763 favelas na cidade do Rio. Nessas regiões, somam-se 1,4 milhão de pessoas. Caso essas localidades juntas fossem um estado, ele estaria na 14ª posição na lista dos que mais registram óbitos em decorrência do novo coronavírus país.

Regiões como Rocinha, Complexo da Maré, Jacaré e Manguinhos encabeçam a lista de comunidades com o maior número de pessoas infectadas e vítimas fatais da doença. Para Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (CUFA), a situação da Covid-19 nesses lugares é muito pior do que se imagina:

— A favela sempre foi negligenciado. Então, é natural que o governo não olhe para ela nesse momento de pandemia. Na minha avaliação e numa pesquisa que fizemos, o número de mortes e contaminados é muito maior.

Ajuda que vem do lado

Além das comunidades contabilizadas pelos painéis do “Voz das comunidades” e do coletivo Frente Maré, há outras dezenas sofrendo com o novo coronavírus. A urbanista Theresa WIlliamson, diretora do Comunidades Catalisadoras, já identificou 31, incluindo locais como Rio das Pedras e Borel. Há duas semanas, em entrevista ao EXTRA, a especialista disse que, em contato com cerca de 40 lideranças comunitárias durante a pandemia, ouviu relatos de muitos óbitos que não aparecem nos registros oficiais.

Para seguir em frente, os moradores das favelas do Rio têm se ajudado. Na Rocinha, na Maré e no Alemão, são os vizinhos que fazem o recolhimento e a doação de cestas básicas para quem mais precisa.

No Complexo do Alemão, já foram distribuídas mais de dez mil cestas básicas. Na Maré, o coletivo Frente Maré doou quase quatro mil kits com alimentos. Já na Rocinha, a associação de moradores já distribuiu quase três mil cestas. Tudo para tentar ajudar em meio à pandemia.

O coletivo Frente Maré tem recolhido doações e feito a distribuição nas favelas do Complexo da Maré
O coletivo Frente Maré tem recolhido doações e feito a distribuição nas favelas do Complexo da Maré Foto: Domingos Peixoto

Fonte: Jornal Extra