Jornal Povo

Alta letalidade e números de casos inexplicavelmente baixos põem em dúvida dados de Covid-19 nas favelas do Rio

Em meio à pandemia, as comunidades cariocas veem o coronavírus se espalhar, mas as vítimas da doença permanecem quase invisíveis ao sistema epidemiológico. A conclusão de especialistas e lideranças locais é reforçada por dados que evidenciam haver algo errado — ou no mínimo ainda oculto — no que se sabe sobre a Covid-19 em territórios nos quais se previa uma tragédia. Altas taxas de letalidade, acima dos 20%, em áreas como Maré, Rocinha, Cidade de Deus, Acari e Vila Kennedy contra uma média de 11% no município e índices abaixo dos 10% na Zona Sul seriam um indício da subnotificação de casos positivos em favelas. E há informações oficiais inexplicáveis, como os apenas 11 infectados e cinco óbitos no Complexo do Alemão, com seus 72 mil moradores.

— Não dá para confiar nesses números, o que é um problema para o processo de flexibilização do isolamento social. Nas áreas mais pobres, onde a maioria depende dos exames na rede pública, a subnotificação é ainda maior. Basicamente, só os internados graves tiveram diagnósticos — afirma Alberto Chebabo, infectologista da UFRJ, explicando como a falta de testes influencia as altas taxas de letalidade (número de mortes entre as pessoas infectadas) nas comunidades. — As mortes foram registradas, mas os casos podem não ter sido identificados, o que altera a conta.

Pessoas que adoeceram sem procurar atendimento médico e mortes em casa (27 só no Complexo da Maré entre abril e maio) engrossam a quantidade de vítimas que nem sequer entraram para as estatísticas. A fase inicial de uma pesquisa da prefeitura com o Ibope é mais um vestígio dessa dimensão oculta da pandemia nas favelas. Numa amostragem de testes na Rocinha, na Cidade de Deus, na Maré e em Rio das Pedras, chegou-se a uma projeção de 90,2 mil infectados. Mas, nas três primeiras regiões (para onde há dados oficiais), até a última sexta-feira havia 857 casos confirmados, com 186 mortes. Panorama distante da realidade, como reforçam relatos de moradores e levantamentos de coletivos e ONGs — que tomaram a frente das ações de combate ao vírus diante das parcas políticas públicas criadas.

No Complexo do Alemão, em vez dos 11 casos e cinco mortes, o painel da Voz das Comunidades aponta pelo menos 108 confirmações e 37 óbitos. Já em Rio das Pedras, onde são estimados 140 mil moradores e 3.700 empreendedores num movimentado comércio, não há dados oficiais: por não ser um bairro, a comunidade tem seus doentes e mortos computados no Itanhangá, em Jacarepaguá ou até na Barra. O que há é o cálculo da pesquisa da prefeitura de que 25% dos moradores já teriam contraído o coronavírus ali.

Medo do estigma

Com a avalanche de pequenos negócios que fecharam e legiões de trabalhadores que perderam o emprego, muitos deles garçons, cozinheiros e empregadas domésticas, a SocialBit, uma das ONGs que atuam no local, mudou sua atuação, antes ligada à tecnologia, para distribuir cestas básicas em Rio das Pedras. Érika Alves conta que a organização tentou realizar seu próprio painel sobre a pandemia. No entanto, esbarrou em resistências que não imaginara:

— Muitas famílias se sentem constrangidas de falar que há um doente em casa. Simplesmente se isolam, talvez com medo de serem estigmatizadas. Há também uma negação muito grande da doença. Muitos não acreditam, dizem que estão com pneumonia, problema cardíaco.

Na região, a falta de testes não é diferente de outras comunidades. A manicure Marília Paixão, de 57 anos, passou mal por 25 dias, com falta de ar e perda de paladar. Apesar de procurar a rede de saúde quatro vezes, não fez exames. Entre amigos e conhecidos de Rio das Pedras, ela conta 20 pessoas que morreram.

Marília passou mal 25 dias e não sabe se teve a doença: ela perdeu 20 conhecidos para a Covid-19
Marília passou mal 25 dias e não sabe se teve a doença: ela perdeu 20 conhecidos para a Covid-19 Foto: Hermes de Paula

— Fiquei muito abatida com as perdas, tive que ficar meses sem trabalhar e vivo com incerteza sobre ter tido ou não a doença — diz ela.

Na Maré — onde oficialmente há 357 confirmações de Covid-19 e 80 óbitos —, o boletim “De Olho no Corona!”, da Redes da Maré, se aproxima mais da realidade de seus 141 mil moradores. O último apontava que, até 29 de junho, havia 711 casos suspeitos, mas sem testes, além de 29 óbitos na mesma situação. Coordenadora do projeto, Lidiane Malanquini afirma que o pico da doença foi observado em maio. Na primeira metade de junho, houve uma queda. Mas, coincidindo com a flexibilização do isolamento, eles voltaram a crescer em junho:

— A cada três sintomáticos que identificamos, só um tem uma comprovação da prefeitura. É preciso ter testes. Sem eles, não é possível dimensionar nem a capacidade para atendimento aos pacientes.

Novas ondas de Covid-19

Em todas essas comunidades, a vida vai voltando ao normal. E a subnotificação, que esconde a gravidade, é um dos empecilhos, por exemplo, para convencer as pessoas a continuarem usando máscaras. A ativista Magda Gomes, do coletivo A Rocinha Resiste, não tem dúvidas de que as consequências da pandemia serão duradouras, com novas ondas.

Ela é uma das lideranças comunitárias que, junto de pesquisadores, propôs, a criação de um plano específico de combate à Covid-19 nas favelas. A proposta foi apresentada, inicialmente, à Secretaria municipal de Saúde, que não encampou a ideia. Agora, ela está em fase final para aprovação de um financiamento da Assembleia Legislativa do Rio, com coordenação executiva da Fiocruz e participação da UFRJ, UFF, Uerj, UniRio e PUC-Rio.

— Será uma forma de conhecermos melhor também, com as pesquisas, o que está acontecendo de fato, integrando as expertises locais — ressalta a sanitarista e professora Ligia Bahia, da UFRJ.

Também membro do projeto, o sociólogo Marcelo Burgos, da PUC, explica que a estratégia é implantar temporariamente em cinco comunidades, entre elas Rocinha, Maré e Alemão, polos específicos de atendimento à Covid-19, centros de isolamento assistido aos doente e de apoio social.

—Muitas pessoas ficaram doentes e morreram em casa. Elas viveram solitariamente a doença, mesmo que os agentes de saúde estivessem em campo tentando identificá-las. Não há clareza do terreno em que estamos pisando. E vamos viver um período crítico, de inverno e consequências de flexibilização do isolamento. São pontos nos quais pretendemos atuar — diz Burgos, prevendo um custo de R$ 16 milhões para a iniciativa.

Fonte: Jornal Extra