“Em que mundo ele vive?”. A indagação de Karen Emanuele de Araújo, de 28 anos, moradora de Cavalcante, na Zona Norte, demonstra sua revolta com a justificativa de Marcelo Crivella para o sumiço de mais de 120 linhas de ônibus das ruas. Pondo a culpa na pandemia, o prefeito disse: “Se nós não temos passageiros, eles (os empresários) vão tirando os ônibus. À medida que os passageiros voltarem, pode ter certeza de que os ônibus voltarão também”. Para a manicure, Crivella deveria ir ao bairro para constatar a falta que o 651 e o 652 está fazendo, principalmente para aqueles que já voltaram a trabalhar, após a adoção de medidas de relaxamento do isolamento social decretadas pelo próprio prefeito.
— Isso não é a resposta que nós queremos. Quer dizer que uma gestante só vai fazer pré-natal quando a pandemia acabar? Ele quer tirar a responsabilidade dele jogando a culpa na população. Em que mundo ele vive? As pessoas já voltaram a trabalhar — afirma Karen.
Sem as duas linhas, que sumiram depois de a Viação Estrela encerrar as atividades, no último dia 31, Karen precisa caminhar cerca de meia de hora até Cascadura quando tem que ir ao médico com a filha, Anna Luzya, de 9 anos, que sofreu recentemente um traumatismo craniano — a menina foi atropelada por uma motocicleta quando brincava em frente a sua casa, há cerca de um mês.
Antes, para levar Anna Luzya às consultas na Penha, Karen recorria ao 651 ou ao 652 para ir a Cascadura, onde pegava o 721 para completar a viagem. Agora, o jeito é fazer o primeiro trajeto a pé. E martírio se repete na volta para casa. Ontem, quando as duas tiveram de voltar ao hospital pela segunda vez na semana, a situação só não foi pior porque, na ida, elas contaram com a carona de um vizinho:
— O normal é andar até Cascadura. A caminhada acaba sendo mais longa porque, além de ser uma criança, minha filha está se recuperando e não pode pegar sol na cabeça.
Nesta sexta-feira, a Secretaria municipal de Transporte (SMTR), por meio de nota, afirmou que, “além de exercer seu papel de órgão gestor do sistema municipal de transportes e fiscalizar diariamente os serviços de ônibus, também tem desenvolvido ações em busca do aperfeiçoamento da oferta de coletivos aos cariocas”: “A partir de levantamentos diários das queixas e sugestões captadas através do canal direto com os passageiros, a secretaria atua junto aos consórcios para que cumpram suas obrigações contratuais”. Veja no fim da reportagem a nota enviada pela secretaria na íntegra.

Lista tem mais de 120 linhas
As duas linhas que fazem falta para Karen estão entre as mais de 120 de um levantamento feito pelo “RJTV” e pelo EXTRA, que consultou seus leitores através das redes sociais, confirmou as mesmas reclamações e acrescentou novos itinerários à lista. A própria SMTR admitiu que alguns trajetos deixaram de ser feitos à revelia da prefeitura, mas alegou não ter uma relação por se tratar de uma informação sujeita a mudanças constantes.
Ao reconhecer o problema, na quinta-feira, Crivella argumentou que o Rio de Janeiro tem uma passagem barata e que os empersádios tiraram os ônibus das ruas para que “o prejuízo não fosse maior”.
— Essas linhas dependem do número de passageiros. Os empresários no Rio cobram a passagem mais barata do Brasil. Agora, se nós não temos passageiros, eles vão tirando os ônibus. Eu garanto a vocês que à medida que a gente for voltando com nossa economia, essas linhas vão voltar. Se não voltarem, faz-se uma nova licitação e punimos. Pode ter certeza de que estamos cuidando do trânsito com carinho, boa vontade e competência. Mas temos que ser realistas: não adianta querer obrigar o empresário a ter prejuízo — disse Crivella.
O professor Thiago Cruz, de 28 anos, de Sepetiba, na Zona Oeste, também ficou revoltado com a resposta do prefeito.
— Se não tivesse passageiros (precisando se locomover), então por que tem tantas vans irregulares tomando conta da região? A passagem não é barata. O prefeito não sabe o que é viver com salário mínimo. Está está governando para os empresários — afirma o professor, que depende das linhas 870 e 891.
Moradores de bairros se unem em abaixo-assinado
Morador em Paciência, também na Zona Oeste, Danilo Rosa, de 36 anos, estava acostumado a pegar um ônibus até Santa Cruz e lá embarcar no BRT para ir à Barra, onde trabalha. Com o sumiço das linhas que faziam essa ligação, só restaram duas opções: caminhar por cerca de 15 minutos até a estação Tancredo Neves, da SuperVia, para pegar o trem ou então fazer esse primeiro trajeto de van. Nos dois casos, a falta de integração tarifária (nem todos os carros do transporte alternativo têm o validador do Bilhete Único) o obriga a bancar uma passagem do próprio bolso.
— Levantamos de madrugada para ir aos nossos trabalhos e ficamos a mercê de vans, que muitas vezes temos de pagar do próprio bolso — reclama o passageiro, que cobra a volta das linhas 825, 839, 840, 849 e 868.
Moradores de cinco bairros (Cascadura, Cavalcante, Tomás Coelho, Engenheiro Leal e Quintino) que eram atendidos pelas linhas 651, 652 e 311 fizeram um abaixo-assinado virtual pedindo a volta delas, consideradas fundamentais para quem mora na região, que perdeu 15 linhas na pandemia. O documento tem mais de 1.500 adesões e é direcionado, de forma online, para a prefeitura.
O argumento do Rio Ônibus, o sindicato que representa os consórcios, é de que a pandemia agravou a crise que o setor já enfrentava antes: “O que se chama de ‘sumiço de linhas’ é, infelizmente, reflexo direto da falta de meios e recursos que permitam a regularidade da operação”.
A nota da SMTR, enviada ao Jornal Povo nesta sexta-feira:
“Além de exercer seu papel de órgão gestor do sistema municipal de transportes e fiscalizar diariamente os serviços de ônibus, a SMTR também tem desenvolvido ações em busca do aperfeiçoamento da oferta de coletivos aos cariocas. A partir de levantamentos diários das queixas e sugestões captadas através do canal direto com os passageiros, a secretaria atua junto aos consórcios para que cumpram suas obrigações contratuais, promovendo o necessário remanejamento da frota no caso da descontinuidade de serviços. A pasta também está revendo os contratos de concessão e desenvolvendo um amplo levantamento com o objetivo de readequar a frota e as linhas de ônibus de acordo com as necessidades atuais da população, tendo em vista que a licitação foi realizada há 10 anos e a cidade passou por inúmeras transformações e episódios relevantes, como a atual pandemia de coronavírus, que provocou a maior crise mundial de mobilidade dos últimos 50 anos.
Para inoperância de linhas e circulação com frota abaixo do previsto, o Código Disciplinar prevê multa de R$ 1.851,20 (a cada vez que é identificada a irregularidade), o que tem sido cumprido à risca pela SMTR. No período de janeiro a julho deste ano, 4.733 multas foram aplicadas aos consórcios e ao BRT Rio, entre elas, 1.260 por inoperância e redução de frota. Estas multas, aplicadas recentemente, estão no prazo para pagamento ou em fase de recurso.
Entre janeiro e julho de 2019, 6.014 autuações foram registradas. Destas 2.947 foram por inoperância ou circulação com frota abaixo do determinado. O valor total das multas aplicadas é de R$ 8.259.631,31, sendo R$ 4.308.027,31 já arrecadados pelo Tesouro Municipal. Cabe destacar que as multas aplicadas em 2019 e que não foram pagas, estão em fase de recurso ou vencidas. As punições impostas aos operadores são submetidas ao devido processo legal, que garante o direito à ampla defesa e contraditório. Destacamos, ainda, que o operador que não arcar com as multas vencidas, após esgotada a fase de julgamento de recurso, está sujeito às sanções cabíveis previstas em contrato, como a inscrição em dívida ativa.
No período de janeiro a julho deste ano, foram registrados 5.598 chamados sobre os serviços das linhas e consórcios que operam o sistema de ônibus no município. No mesmo período de 2019, 10.958 reclamações foram recebidas. Em ambos os casos, as principais queixas são referentes à escassez de ônibus nas linhas, intervalo longos entre os veículos e consequente excesso de passageiros, má conservação e conduta dos dos motoristas. O consórcio que recebeu mais reclamações ao longo de 2019 foi o Santa Cruz, contabilizando 2.660 multas ao longo do ano por irregularidades nos serviços prestados à população.
Cabe destacar que a SMTR disponibiliza, desde junho deste ano, o “SMTR com VOCÊ”, canal direto com os passageiros pelo whatsapp (21) 98909-3717, que reúne registros dos próprios usuários de ônibus sobre falhas pontuais nos serviços. A partir dessas informações, a secretaria abre procedimento de averiguação e cobrança. Neste canal, as 10 linhas mais reclamadas foram: 398 (Campo Grande x Candelária), 853 (Vila Kennedy x Mato Alto), 850 (Mendanha x Campo Grande), 665 (Pavuna x Saens Peña) , 651 (Méier x Cascadura), 819 (Jardim Bangu x Bangu) , 778 (Cascadura x Pavuna), 311 (Engenheiro Leal x Candelária), SE 017 (Campo Grande x Santa Cruz) e 928 (Marechal Hermes x Ramos)”.
Fonte: Jornal Extra