Aos 10 anos, estuprada pelo tio e grávida. A história de uma menina da cidade de São Mateus, no Espírito Santo, não apenas chocou o país, como também voltou os olhos de todos para a situação de crianças e adolescentes que são vítimas de estupro. No Rio, os números ajudam a ter a dimensão do problema. A cada três horas, uma criança ou adolescente foi vítima desse crime no estado, segundo dados de janeiro a março deste ano. São nove registros de menores que sofreram abusos sexuais a cada dia. No total, foram 797 vítimas no período. Os números são do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio, que fez um levantamento.
Os dados revelam ainda uma outra face do estupro de vulnerável: a demora em registrar o crime. A média de tempo entre a data em que o abuso ocorre e a comunicação do fato à Polícia Civil é de 381 dias — pouco mais de um ano.
No entanto, em alguns casos esse intervalo pode ser bem maior do que a média. Do total de casos registrados no primeiro trimestre deste ano, 22 deles ocorreram há mais de dez anos. Um deles é de uma jovem de 19 anos, moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, segunda cidade do estado com o maior número de casos. No início deste ano, ela decidiu procurar a polícia para denunciar um vizinho que lhe estuprou durante seis anos. Os abusos começaram em 2006 e se estenderam até 2012.
A jovem relatou que o homem costumava cuidar dela para que sua avó paterna trabalhasse. No momento em que ficava sozinho com a criança, o vizinho abusava dela. A menina relatou que os abusos começaram com carícias e evoluíram para a penetração.
Já o caso de uma mulher de 28 anos, também moradora da Baixada, só chegou à polícia porque a sogra resolveu denunciar o crime. Após ter ouvido o desabafo da nora, que relatou ter sido obrigada a manter relações sexuais com o padrasto quando tinha 13 anos, ela resolveu procurar a delegacia. A mulher ainda contou que sua mãe, que já faleceu, sabia dos abusos. Revoltada, a sogra decidiu procurar a polícia.
Apesar do longo tempo decorrido, os crimes ainda podem resultar em punição. Os delitos de estupro de vulnerável ocorridos até 16 de maio de 2012 prescrevem 20 anos após o fato. Para os posteriores a essa data, o prazo foi ampliado e a prescrição de duas décadas só começa a contar a partir do momento que a vítima completa 18 anos.
A promotora de Justiça do Rio e professora de Direito Penal Claudia Barros Portocarrero explica que a alteração no prazo para punir o estuprador foi motivada justamente pelo fato desse crime muitas vezes demorar a ser denunciado às autoridades.
— O que ocorria era que muitas vezes, quando essas vítimas resolviam denunciar o que havia acontecido, já era tarde. O crime já estava prescrito e não havia o que ser feito mais — relembra a promotora.
Vítimas são ameaçadas ou seduzidas
A delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher da Zona Oeste do Rio (Deam Oeste), Mônica Areal, analisa que a demora para denunciar o caso pode se dar por medo da vítima ou até mesmo pelo fato da criança demorar a perceber que está sofrendo abusos. Na última semana, Mônica prendeu um avô acusado de estuprar a neta de sete anos.
— O agressor, em 90% dos casos, tem duas formas de agir. Ou ele ameaça a criança, dizendo que se ela contar dos abusos, vai bater nela ou matar sua mãe, por exemplo. Ou então ele seduz a criança com presentes. Uma coisa que percebo é que esse agressor que seduz, em geral, não penetra na criança para não machucá-la. Ele apenas toca nela. Então, nesses dois perfis, demora para a criança saber que está sendo abusada ou para tomar coragem de contar.
A promotora Claudia Portocarrero acrescenta que em muitos casos uma terceira pessoa é que incentiva a vítima a denunciar seu algoz:
— Uma terceira pessoa que surge é sempre um fator encorajador. Pode ser uma avó que percebe o que está ocorrendo, mas não mora com a vítima, ou até um novo relacionamento da vítima. Houve um caso, para citar como exemplo, no qual um novo namorado que encorajou a vítima a denunciar. O grande problema da vítima abusada é que ela se sente muito culpada e tem a ideia de que ninguém vai acreditar naquilo que ela disser. Fica totalmente amedrontada, até porque sempre são feitas ameaças — explica.
De acordo com o artigo 217-A do Código Penal, caracteriza-se estupro de vulnerável “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Pela legislação, o estupro não ocorre apenas quando há penetração. O fato de tocar as partes íntimas da criança, por exemplo, já caracteriza o crime. Pela legislação brasileira, a relação sexual com menor de 14 anos, ainda que consentida, é considerada estupro.
Também é considerado estupro de vulnerável a prática de conjunção carnal ou outro ato libidionoso com “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
Abusos dentro da família
Os dados levantados pelo Jornal Povo revelam ainda que, na maioria das vezes, o abusador está dentro da própria família. Padrastos, o pai e avôs são os que mais abusam das crianças e adolescentes no Rio. Os vizinhos das vítimas vêm em seguida na lista.
— A atenção dos pais é fundamental. É importante perceber os sinais que a criança dá. Observar sempre é fundamental. E nos casos em que o estupro é descoberto, o apoio da família também é muito importante — analisa a promotora Claudia Portocarrero.
A delegada Mônica Areal faz ainda outros alertas:
— Fundamental acompanhar o que a criança faz na internet. Observar se ela chega em casa com dinheiro ou presentes também é importante, pois os abusadores usam isso para seduzi-las. A mãe também tem que estar atenta se a criança anda amuada, se está com algum tipo de marca ou se relata alguma dor — acrescenta a delegada.
Fonte: Jornal Extra