De um lado, um consórcio de quase uma centena de traficantes de quatro favelas do Rio dominadas pela maior facção do estado, escondido na Floresta da Tijuca com fuzis e trajes ghillie — roupa camuflada cujo tecido torna quase impossível notar uma pessoa em meio à vegetação. Do outro, milicianos equipados com drones usados para tentar observar a movimentação dos rivais na mata em meio à escuridão. No meio da guerra pelo controle da Praça Seca, na Zona Oeste, há quase 70 mil moradores reféns da violência.
Investigações da Polícia Civil, relatórios da PM e processos judiciais em andamento contra as duas quadrilhas revelam os bastidores da maior e mais longeva guerra entre tráfico e milícia no Rio: a Praça Seca já é disputada pelos rivais há uma década. Desde o início de julho, no entanto, os confrontos se acirraram. Foram três tentativas de invasão pelos traficantes, que resultaram em pelo menos cinco mortes — entre elas, a do estudante Caio de Jesus Barbosa, de 24 anos, atingido por uma bala perdida, e a do sargento Fábio Jesiel Monteiro Ribeiro, baleado durante uma operação na Favela da Covanca após uma das tentativas de invasão.
No início de julho, durante o primeiro dos ataques dos traficantes, moradores da Praça Seca se surpreenderam com tiros disparados da mata para o alto. Os criminosos tinham como alvo um drone usado pelos milicianos para monitorar os rivais. Em grupos de WhatsApp de milicianos da região monitorados pela polícia, os criminosos conversam sobre a compra de um drone com uma câmera acoplada, “que pega o calor do corpo”.
Desde 2017, a milícia dá as cartas em todas as favelas da região. De lá para cá, o bando chefiado por Edmilson Gomes Menezes, o Macaquinho, e Horácio Souza Carvalho invadiu a Chacrinha, a Covanca e o Jordão, favelas próximas que ainda eram dominadas por traficantes e milícias rivais, e formaram um cinturão que vai do bairro de Campinho, na Zona Norte, até o Tanque, na Zona Oeste. Em toda essa área, moradores, comerciantes, mototaxistas e empresários pagam taxas que vão de R$ 30 a R$ 200 mensais.
Em fevereiro de 2018, numa operação da Polícia Civil, Horácio, o chefe a quadrilha, foi preso durante operação da Polícia Civil num apartamento em frente à praia da Barra da Tijuca. Mensagens encontradas pela polícia em celulares do miliciano revelam como o grupo conseguiu manter o controle sobre a Praça Seca.
Pelo WhatsApp, Horácio recebia, com frequência, fotos de cadáveres. Segundo o Ministério Público, eram desafetos mortos pelos paramilitares. O miliciano também conseguia, pelo aplicativo, saber, com antecedência, de operações da polícia. “Mano, tá indo patamo e GAT lá no JR”, avisou um interlocutor antes de uma operação no Juramento, em Vicente de Carvalho.
Em outro diálogo, Horácio e um comparsa conversam sobre um encontro em que comerciantes da região seriam informados sobre o valor que teriam que pagar à milícia. Para convencê-los a pagar, Horário diz a seu interlocutor para que avise que, com o pagamento, “a segurança na região seria reforçada”. O miliciano, por fim, diz que, se algum roubo acontecer na região, seus comparsas “fecham a rua e é bala”. Segundo o MP, a expressão indica que “os responsáveis pelo crime patrimonial seriam assassinados”.
Em outras conversas, Horácio determina que o valor cobrado dos mototaxistas sofra um aumento, de R$ 30 para R$ 50, e defende o assassinato de desafetos, para que eles “sirvam de exemplo”.
A maior facção do Rio, entretanto, quer retomar o controle da região. Segundo a Polícia Civil, quatro chefões formaram um consórcio de homens e armas e estão por trás dos ataques. Dois deles estão presos: Paulo César Souza dos Santos, o Paulo Muleta, que comanda o Complexo do Lins, e Luciano da Silva Teixeira, o Sardinha, da Cidade de Deus. Os outros são Pedro Paulo Guedes, o Urso, e Luciano Martiniano da Silva, o Pezão. Oriundo da Vila Cruzeiro, Urso é o homem de guerra da facção, responsável pela logística dos ataques. Já Pezão, do Alemão, é o armeiro.
Tiroteio na floresta
O maior trunfo do tráfico para invadir a Praça Seca é o domínio da Floresta da Tijuca: conhecedores da mata, os criminosos percorrem mais de 8 km para ir do Complexo do Lins até as favelas da região. O plano para a invasão começou a ser posto em prática em março, antes da pandemia de coronavírus, quando os morros do Dezoito e do Saçu, em Quintino, foram invadidos. As duas favelas são vizinhas à Praça Seca e foram usadas como ponto de apoio pelos traficantes para a primeira tentativa de invasão.
A mata também é a rota de fuga dos criminosos. Após outro ataque frustrado, em 29 de julho, um bando de mais de 30 homens fugiu da Praça Seca pela floresta em direção a Jacarepaguá, na Zona Oeste. Os criminosos saíram da mata dentro de um condomínio fechado e sequestraram motoristas para serem levados até a Cidade de Deus.
Já os milicianos, por outro lado, foram buscar o apoio de outra facção do tráfico para repelir os invasores. O pacto — costurado, no fim de 2018, com Walace de Brito Trindade, o Lacoste, chefe do tráfico da Serrinha, em Madureira, e rival da maior facção do Rio — prevê o “empréstimo” de homens e armas para que a milícia possa defender seus territórios. Em troca, os traficantes podem explorar a venda de drogas nas favelas dominadas pelos milicianos.
Campo minado
A guerra entre tráfico e milícia também é travada na internet. Traficantes usam as redes sociais para expor fotos e identidades de milicianos que dominam a Praça Seca. “Miliciano da comunidade do Bateau Mouche, mais conhecido como Beiça, é radinho dos milicianos, fica na entrada do morro”, diz uma das postagens.
Já os paramilitares usam as redes sociais para mostrar que seguem dominando a região. Na semana passada, milicianos postaram fotos de fuzis e munição arrumadas no chão, emulando imagens de apreensões feitas pela polícia, como se as armas tivessem sido tomadas de traficantes.
A guerra pelo controle da Praça Seca já teve até mudança de lado: um miliciano virou traficante. Hélio Albino Filho, o Lica, preso em 2018, se aliou ao tráfico após ser expulso da Praça Seca por milicianos. Lica integrava até 2017 a milícia que dominava a favela da Chacrinha, uma das comunidades da região. Entretanto, sofreu um golpe de outros milicianos que exploravam comunidades vizinhas e foi obrigado a fugir da favela. Após sua fuga, toda a sua família foi expulsa do local. No início deste ano, Lica se aliou ao tráfico com uma promessa: ajudar na invasão da favela de onde foi expulso.
Lica era um remanescente da milícia do ex-vereador Luiz André Ferreira da Silva, o Deco (PR), que dominava os bairros de Campinho, Quintino, Praça Seca e Tanque desde 2004.
Fonte: Jornal Extra