Jornal Povo

Pesquisa mostra que só 1,9% do Rio de Janeiro escapa do tráfico e da milícia

A pesquisa inédita “Mapa dos Grupos Armados do Rio” mostrou o tamanho da extensão territorial do Rio sob domínio de quadrilhas criminosas. Enquanto 57,5% da área da cidade do município é dominada pela milícia, 15,4% tem controle de facções do tráfico e 25,2% estão em disputa. Resta, assim, uma minoria privilegiada de 13 bairros da cidade sem nenhuma denúncia de atuação de milicianos ou traficantes durante 2019. Uma porção de apenas 22 quilômetros quadrados, que representa 1,9% da extensão territorial da cidade, e abrange 156 mil moradores.

O estudo é fruto de um convênio entre o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia (2253-1177). Os pesquisadores não se debruçaram sobre os motivos que expliquem essas “bolhas de paz” na cidade, mas sabese que cada região tem suas particularidades, como fatores geográficas, sociais ou até presença de instalações do Exército.

Segundo o professor de Sociologia Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, não foi identificado um padrão entre os 13 bairros, e essa análise será qualificada posteriormente.

Os 13 bairros são: Abolição, Campo dos Afonsos, Higienópolis, Ipanema, Jardim Botânico, Lagoa, Moneró, Riachuelo, Ribeira, Urca, Vista Alegre e Zumbi. A presença de alguns locais na lista pode ser entendida por causa da metodologia de trabalho, que fez um recorte de denúncias apenas em 2019.

Policiamento na Avenida Marechal Fontenele, no Campo dos Afonsos
Policiamento na Avenida Marechal Fontenele, no Campo dos Afonsos Foto: Fabiano Rocha

Isso pode explicar, por exemplo, a presença de Ipanema, que abriga o Morro do Cantagalo, com domínio histórico de uma facção de tráfico. Mas, em 2019, não houve denúncias sobre controle armado no bairro. Há também três bairros — Zumbi, Moneró e Ribeira — da Ilha do Governador, que enfrenta problemas do crime organizado.

Na Zona Norte, ‘bolhas’ são vizinhas de áreas perigosas

Na Zona Norte, os moradores dos locais sem denúncia reclamam da ausência do poder público e citam que seus bairros foram abandonados. Ainda assim, celebram o fato de estarem, em termos de violência, em situações melhores que a média dos vizinhos. O professor de Educação Física Daniel Alves, por exemplo, mora em Vista Alegre há cinco anos, depois de ter saído do Irajá. Comparando os dois lugares, diz que a segurança agora é melhor, mesmo que sejam bairros separados por 10 minutos de caminhada.

— Não diria que Vista Alegre é propriamente um local seguro, mas é menos perigoso do que Irajá. Na rua onde eu morava antes, tinha muitos assaltos. O ideal seria que a segurança fosse a mesma em todos lugares, pois circulamos por vários bairros — explicou Alves, que pretende no futuro sair do Rio por causa da violência. — Onde eu vivo é tranquilo, mas nos bairros ao redor, não é. Há duas semanas, teve um tiroteio em Parada de Lucas (bairro da Zona Norte do Rio onde há áreas dominadas pelo tráfico de drogas), que é bem perto de minha casa, coisa de cinco a seis minutos de distância.

Moradora do Riachuelo há 42 anos, desde que nasceu, a gerente administrativa Vera Fontanella diz que o local já foi “muito bom”, mas hoje está “abandonado”. A ausência do poder público, diz, se exemplifica nas longas e recorrentes esperas até a prestação de um serviço básico, como trocar iluminação ou tapar buraco na rua.

— Muita gente que nasceu e cresceu aqui foi se mudando. Não temos milícia nem tráfico, mas há assaltos de vez em quando. Tirando isso, é um bairro tranquilo e família. Por mais que a gente esteja abandonado (pelo poder público) vivemos com tranquilidade — explica Vera, que lembra que Riachuelo tem pouco comércio, o que dificultaria a presença da milícia. — Me sinto segura aqui pelo fato de não ter milícia e não ter que pagar, como em outros lugares, um valor alto para ter segurança. Mas, ao mesmo tempo a gente se sente vulnerável porque não temos segurança pública.

Na Zona Sul, mais apoio do poder público e atuação de associações

Já na Zona Sul, residentes destacam a força de atuação das associações locais e a cooperação de órgãos públicos, incluindo o Exército. Moradora da Lagoa e presidente da Associação de Moradores da Fonte da Saudade, a médica Ana Simas reconhece ser um privilégio morar num local sem domínio de milícia ou tráfico. Ela diz que em alguns pontos do bairro, em especial no alto da Fonte da Saudade, é possível ouvir tiros em dias de operação na comunidade dos Tabajaras, mas que é algo que se reduziu nos últimos anos.

— Aqui certamente não temos denúncia de nada em relação à presença de tráfico ou milícia. Lembro que em 2007 houve um caso em que uma bala perdida atingiu a cada de um músico na Epitácio Pessoa, mas é o único que me lembro. É realmente um privilégio, o ideal é que isso fosse a realidade da cidade toda — explicou a médica, que diz que os problemas mais comuns na região são de desordem urbana e obras ilegais. — Apesar de sermos um bairro de passagem, a Lagoa tem muitas ruas sem saída, e todo mundo se conhece.

No Jardim Botânico, a situação é semelhante. Entretanto, a jornalista Christina Martins, moradora do bairro, diz que a violência urbana ocorre em assaltos.

— Oásis (de segurança) no Rio não existe, porque a gente sabe das condições da cidade e da falta de gestão. Aqui tem certa segurança sim, mas a gente sofre com assaltos, que estão crescendo, como em outros pontos da cidade — afirma Christina, que destaca o trabalho das associações de moradores locais. — Temos várias associações atuantes, que ajudam a resolver os problemas junto ao poder público. Mas não é uma bolha, temos nossos problemas.

Presidente da Sociedade dos Amigos da Praia da Joatinga, o advogado Marcos Velasco também destaca o trabalho das associações de moradores. Segundo ele, o Joá, de tempos em tempos, sofre tentativa de ocupação irregular, o que demanda fiscalização frequente. Ademais, diz que o Exército faz inspeções nas matas a cada 15 dias.

— É ficar de olho, sempre atento e pedir socorro para as autoridades. Temos sete ou oito associações (de moradores) e cada uma cuida do seu lugar e todo mundo reclama. A milícia e o tráfico entram onde está abandonado , porque o poder público não quer atuar, e onde as pessoas não têm força para brigar. Se quiserem entrar a gente vai brigar junto. Mas, por enquanto não estão interessados na gente. Estamos numa cidade complicada, que está abandonada e onde tudo dá errado. Mas também não adianta viver numa bolha, porque a gente circula pela cidade, aí só com carro blindado — diz Velasco.

Fonte: Jornal Extra