Cinco meses após perder o filho de forma trágica, Rafaela Coutinho Matos, de 37 anos, terá que reviver na próxima quinta-feira o pior dia de sua vida. A polícia fará a reprodução simulada da morte de João Pedro Matos, que foi baleado nas costas por um tiro de fuzil dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Aos 14 anos, o menino entrou para uma triste estatística que não para de subir. Dez crianças já foram mortas a tiros este ano, no estado do Rio de Janeiro, de acordo com levantamento da ONG Rio de Paz. A marca, atingida em dez meses, supera os casos registrados em todo o ano passado, quando sete vítimas de 0 a 14 anos tiveram as vidas ceifadas por disparos de armas de fogo.
— Nos últimos cinco meses, vivi os piores dias da minha vida. Achei que ia melhorar com o tempo, mas a saudade só cresce — diz a mãe.
As estatísticas da ONG mostram que nos últimos cinco anos houve uma mudança de padrão na curva de mortes de crianças baleadas. De 2007 até 2014, a média era de três óbitos por ano. Em 2015, o índice atingiu pela primeira vez a marca de sete casos. De 2016 a 2018, foram dez casos a cada ano. Em 2019, o indicador voltou a cair para sete. O ano de 2020, no entanto, pode se tornar o mais letal para crianças vítimas de armas de fogo, caso haja um novo caso até dezembro.
— Quando uma criança é vítima de violência por arma de fogo, esse é um evento tão chocante que a sociedade deveria parar tudo para saber o que está acontecendo. A primeira providência seria colocar o esclarecimento dessas mortes como prioridade — diz a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes.
Somente na última década, 69 crianças foram mortas a tiro no estado, de acordo com o levantamento. Mas a quantidade de vítimas pode ser ainda maior, segundo o presidente da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa.
— O levantamento é baseado na cobertura jornalística. Se for feita uma pesquisa nos dados da Saúde, é provável que o número seja maior — afirma ele, que critica a naturalização das mortes: — A apatia da sociedade e a indiferença do poder público são sintomas da patologia social que nos aflige sem percebermos.
O advogado criminalista João Tancredo, que defende casos emblemáticos como o de Maria Eduarda, morta aos 13 anos após ser baleada no pátio de uma escola municipal, em Acari, na Zona Norte da cidade, critica a demora na investigação dos casos.
— No caso da Maria Eduarda, ainda não há nenhuma decisão sobre a autoria do crime. Foram dois policiais que atiraram, mas só foi identificada a munição de um deles. Agora, está uma discussão eterna sobre quem vai julgar, se é a Justiça Militar ou o Tribunal do Júri. Esse é um processo sem solução — desabafa.
O caso de Maria Eduarda não é exceção. O criminalista chama atenção para o processo de Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, que morreu após ser atingido na barriga por uma bala perdida, durante uma operação policial no Complexo da Maré, em 2018. Outra investigação que não anda é a da morte de Kauan Peixoto, de 12 anos, baleado em Mesquita, no ano passado.
— O desinteresse pela apuração do agente criminoso é muito grande — diz Tancredo.
Questionada sobre o andamento das investigações das dez crianças mortas a tiros este ano, a Polícia Civil não se manifestou.
Escada para o céu
Um dos casos sem solução é o de João Pedro Matos, que foi morto há cinco meses, com um tiro de fuzil nas costas durante uma operação das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Ele estava brincando com parentes e amigos em casa, quando a residência foi invadida por policiais.
A irmã da vítima, Rebeca, de 4 anos, ainda tenta assimilar a perda. Quando a mãe explica que o menino está no céu, ela pede uma escada para subir e entregar roupas a ele.
— Ela sempre tem lembranças do irmão. A gente diz a ela que o irmãozinho dela está no céu, que o Papai do Céu, e ela acha que é tudo muito concreto — conta Rafaela Coutinho Matos, de 37, mãe de João Pedro.
Hoje, Rebeca usa o quarto que era do irmão, cujas paredes eram de cor verde e foram pintadas de rosa.
— Já são 5 meses, e a nossa vida está sendo bem difícil. A gente imaginava que com o passar dos dias nossa situação ia melhorar, mas não é isso que está acontecendo. A saudade só aumenta. Estamos vivendo os piores dias das nossas vidas — diz a mãe.
Hoje, a família de João Pedro vive em busca de Justiça. Rafaela aguarda com ansiedade a realização da reprodução simulada do crime, marcada para o dia 29 de outubro. A casa, atingida por 72 tiros, hoje está fechada.
Enquanto aguarda pelo andamento da investigação, Rafaela sente reabrir a ferida da dor toda vez que uma criança morre baleada.
— Quando isso acontece com alguma mãe eu partilho da mesma dor. Não desejo isso para mais ninguém — diz.
Outras vítimas
A vítima mais jovem de bala perdida este ano foi Maria Alice, de apenas 4 anos. A menina foi baleada durante um confronto entre bandidos em Três Rios, no Vale do Paraíba. Ela morreu na noite do dia 2 de julho, no Hospital Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Já o menino Ítalo Augusto, de 7 anos, estava brincando na porta de casa, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, quando foi atingido por um disparo. Ele chegou a ser levado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro, mas chegou ao local morto.
João Vitor Moreira dos Santos, de 14 anos, foi atingido por uma bala perdida no dia 29 de janeiro, quando passava pela Avenida Vicente de Carvalho, no bairro Vila Kosmos, na Zona Norte do Rio. O menino estava acompanhado do avô e uma tia. Segundo parentes, eles voltavam de uma festa.
Já Luiz Antônio de Souza Ferreira, que também tinha 14 anos, foi atingido ao sair de uma consulta no psicólogo, no dia 6 de fevereiro. O adolescente foi baleado na perna, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e não resistiu.
Nem todas as crianças mortas a tiros este ano foram vítimas de balas perdidas. Rayane Lopes, de 10 anos, foi morta numa chacina, na madrugada do dia 28 de junho, no condomínio Jamaica, em Anchieta, na Zona Norte da cidade. O crime aconteceu durante uma festa junina e terminou com outras sete pessoas feridas. Já o menino Kauan Vítor, de 11 anos, foi baleado na cabeça no dia 25 de junho, no Complexo da Maré, por outro menor de idade que teria disparado a arma acidentalmente, segundo relatos de parentes à Polícia Militar.
Outro caso que não se configura como bala perdida foi o de Douglas Enzo Maia dos Santos Marinho. Ele foi morto no dia em que comemorava o aniversário de 4 anos. Um irmão de 6 anos viu quando o menino foi baleado no peito, durante sua festa, em Piabetá, no distrito de Magé, na Baixada Fluminense. De acordo com Vagner Maia, de 39 anos, tio das crianças, o irmão de Enzo relatou para a família que Pedro Vinícius de Souza Pevidor, de 21, estava se dirigindo para o portão da casa, quando colocou a mão para trás, segurando um revólver. Segundo o relato da criança, Enzo estaria de pé, a pouca distância de Pedro, quando o suspeito o baleou no peito.
Fonte: Jornal Extra