A princípio, poderia parecer algo até inofensivo: uma caixinha com preço baixo e que pode transmitir, quando ligada à televisão, todos os canais, além de séries e filmes. Uma investigação da Polícia Civil, da Receita Federal e da Polícia Federal, no entanto, descobriu que, além de toda a gravidade sobre a quebra de direitos autorais por trás da pirataria, o contrabando e distribuição das chamadas TV Box no mercado negro, estado à fora, tem se tornado também uma nova, crescente e poderosa fonte de lucro para a maior e mais violenta milícia do Rio, chefiada por Wellington da Silva Braga, o Ecko. Os valores milionários que os paramilitares recebem com a exploração do serviço, considerado o “novo gatonet”, tem contribuído para a expansão e fortalecimento bélico dos criminosos.
De acordo com a Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (Core), que junto aos agentes federais, tem combatido a chegada do produto ao RJ. Só nas últimas semanas, foram apreendidas mais de 545 mil TV Box nos portos de Itaguaí, Resende e na Baixada Fluminense: todas compradas por laranjas, que já são investigadas. O prejuízo estimado aos paramilitares é de R$ 335 milhões.
As investigações apontam que os milicianos apostam em duas formas de lucro em cima do chamado IPTV — sigla para Internet Protocol Television, um método de transmissão de sinal via internet. A principal delas consiste na importação ilegal, direto da China, dos aparelhos de TV Box, que transformam qualquer aparelho de televisão em smart TV, e operam de forma muito parecida com a de um celular, mas com direito a controle remoto. Os criminosos pagam um valor muito menor, instalam softwares ilegais com canais e filmes pirateados e revendem por valores que podem chegar a até R$ 2 mil. Em outra prática, apontam os investigadores, a milícia vende uma versão mais barata da caixinha, que pode custar a partir de R$ 200, e depois cobram uma mensalidade muito abaixo da praticada pelos provedores oficiais, para liberar uma espécie de login, onde o comprador pode acessar os canais, inclusive os de pay-per-view, distribuídos direto de uma central de servidores ligados a computadores da milícia. A cada dispositivo apreendido, a polícia estima um prejuízo médio de R$ 600 à organização criminosa.
O delegado titular da Core, Fabrício Oliveira, que participa e acompanha de perto as investigações, conta que a estratégia, neste primeiro momento, é de combater a chegada destes aparelhos aos portos do Rio. Em paralelo, em ação conjunta com os federais, a polícia tentar listar também os envolvidos no esquema.
— Nossas investigações indicam que milicianos atuam nesta área ganhando dinheiro tanto com a importação e revenda, quanto com a cobrança de mensalidades. Estamos fazendo de forma conjunta (com Receita e Polícia Federal) uma análise de inteligência e, a cada apreensão, chegamos até nome de empresas, profissionais, para tentarmos descobrir e listar quem está pagando por tudo isso. Nossos indicativos iniciais são de que todo esse material se destina ao grupo da maior milícia do Rio de Janeiro. Neste momento, estamos em fase de apreensões, que, ao que tudo indica, continuarão aumentando, porque nossas operações são contínuas — disse.
A quantidade destes dispositivos que tem entrado no Rio também é algo que vem chamando atenção dos agentes. Nunca se viu tanto aparelho de TV Box chegando ao porto do estado e circulando no mercado negro, e isso pode ser fruto de uma “oportunidade” vista pela milícia em tempos de pandemia.
— As informações que temos dão conta de que, nos últimos meses, aumentou e muito a quantidade destes equipamentos importados para o Brasil, e a procura da população, até em função da pandemia, tem contribuído para essa procura. Mas estamos trabalhando para conseguir coibir esta prática — acrescentou o delegado.
Como o crime é praticado
- A milícia utiliza laranjas para contrabandear em massa as TV Box direto da China e por preço inferior; eles são livremente revendidos no varejo ilegal;
- Alguns aparelhos são modificados para que transmitam diretamente, via internet, filmes, séries e o sinal de TV pirata da milícia; estes, podem valer até R$ 2 mil;
- Outros aparelhos, mais simples, são vendidos mais baratos e sem o “serviço” instalado. No entanto, a milícia patrocina as chamadas “listas de IPTV”, que dão acesso ilegal, por meio de uma mensalidade, aos canais da TV a cabo no aparelhinho;
- Para adquirir o sinal, o criminoso assina um pacote de TV a cabo e o descriptografa através de um software, ou mesmo rouba o sinal que é transmitido para aquela região por uma operadora autorizada. Muitas vezes, ameaçando técnicos;
- O sinal é retransmitido on-line por meio de um servidor, que não precisa ser muito potente, para os “clientes” do serviço pirata. Como tudo é feito via internet, essas pessoas muitas vezes também acabam tendo que assinar o provedor pirata dos paramilitares.
O professor de Engenharia e Telecomunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Claudio Schara, doutor em Ciência da Computação, conta que o negócio é ainda mais lucrativo para essas criminosos por precisar de internet.
— Com o IPTV, ou streaming, o usuário ao invés de receber o cabo, agora recebe o serviço inteiro via internet, e a própria internet oferecida normalmente é a da própria milícia. Ou seja, a TV pirata ficou completamente pirata. Não precisa nem do cabo mais para chegar lá — disse.
Schara conta que o criminoso, para retransmitir os canais via internet de forma ilegal, consegue adquirir o sinal original ou assinando um pacote ou roubando diretamente o que é transmitido pelos cabos.
— Ele descriptografa o sinal, através de software, e consegue reproduzi-lo. Em alguns casos, onde há cabeamento legal, acabam acachapando técnicos de operadoreas e os forçando a distribuir o sinal para eles gratuitamente. E, para distribuir o sinal do IPTV, eles não precisam nem de grandes servidores. Ao contrário de um Netflix, por exemplo, que oferece serviço on demand, a TV ao vivo requer muito menos potência dos servidores.
Ofertas nas redes
Para conseguir expandir o raio de ação do serviço, até para além de seus domínios, e conseguir captar cada vez mais clientes de forma ilegal, os milicianos, responsáveis pela distribuição do sinal pirata de IPTV, também recrutam comparsas ou até moradores para que possam revender os pacotes. Em rápida busca pelas redes sociais, a reportagem conseguiu encontrar ofertas em grupos de vários bairros dominados por paramilitares, como Campo Grande, Santa Cruz, Itaguaí, além de outros redutos da Zona Oeste e municípios da Baixada.
Fonte: Jornal Extra