RIO — Depois de comerem um mingau ralo de fubá com açúcar, pela manhã, as primas Sara e Rayevilly da Silva, de 11 anos, tomaram uma decisão: andaram quatro quilômetros de casa até um supermercado, sozinhas, em Guaratiba, na Zona Oeste, para pedir que alguém pagasse alimentos para o almoço. Para a avó, Maria do Rosário da Silva, de 62 anos, contaram que iriam no armazém da esquina pedir um pão, pois na geladeira, que por estar quebrada só serve de armário, nem garrafa de água tinha. Era dia 30, dois dias antes da virada do ano, quando as meninas chegaram ao mercado e colocaram num carrinho: arroz, feijão, carne seca, café, goiabada, chocolate e um par de chinelos. A cena chamou atenção de dois policiais militares do 27º BPM (Santa Cruz), que estavam no local. Eles tinham sido acionados para resolver um caso de ameaça a um funcionário do estabelecimento.
O sargento Alexandre Alves Henriques, de 48 anos, há 20 na corporação, e o cabo Giresse de Souza Cândido, de 33, há seis na PM, acharam estranho as garotas, ambas franzinas, estarem sem um responsável. A gerente do estabelecimento informou que elas pediam aos clientes que pagassem pelas mercadorias e não sabia como lidar com a situação. Pai de uma menina de nove anos, Giresse se aproximou das crianças e perguntou onde estavam os pais delas. Rayevilly pediu para conversar a sós com ele. Ao policial, ela contou que a família tinha vindo de João Pessoa, na Paraíba, fugindo do pai da outra menina, que era violento e ameaçava a família. A avó, com medo, decidiu fugir para o Rio de Janeiro. Penalizados com a situação, os dois policiais pagaram pelas comprar o valor de R$ 187,00, dividida com a gerente que também decidiu contribuir com a despesa.
— Fiquei chocado com que ouvi da menina. O que elas estavam comprando não era nada demais. Na conversa, a Rayevilly, mais falante, disse que a avó podia explicar melhor. Peguei o endereço com ela e fui na casa da família. Deixamos as crianças sob a guarda da gerente. Encontrei Dona Maria do Rosário com outros netos, a filha e o genro. Todo mundo morando numa casa apertada. Isso me tocou muito. A gente reclama da vida, mas tem pessoas em pior situação que a nossa, sem ter o que comer! — comenta Giresse, lembrando que levou a avó para o mercado para buscar as netas e as mercadorias.
Colega de patrulha, o sargento Alexandre, apesar de ter mais tempo na Polícia Militar, conta que não consegue ficar insensível quando vê situações de pobreza extrema por onde anda:
— Comer mingau de fubá com açúcar e não ter a expectativa de outra refeição é muito triste.Na casa de sala, quarto, cozinha e banheiro, vivem Maria do Rosário, o marido, a filha, o genro e seis crianças, uma delas especial. Jheycon tem nove anos, mas tem deficiência de crescimento e de fala. Ao todo são 10 pessoas no imóvel. Os adultos estão sem emprego fixo. Só a matriarca recebe o auxílio de R$ 600 do governo federal, do qual tira R$ 500 para o aluguel, que está atrasado um mês. Os R$ 100 restantes são para o gás e a alimentação. A filha Priscila Silva é diarista, mas como estão há apenas cinco meses no Rio, a pandemia acaba trazendo dificuldades para este tipo de atividade.
— Emprego é o mais importante. Aqui tem muito sítio por perto. Meu marido queria ficar como caseiro. Assim, nos livraríamos do aluguel — diz Maria do Rosário, que conta que levou um susto quando viu os policiais a chamarem no portão de casa — Era, mais ou menos, 11h da manhã, quando eles perguntaram se eu era a avó de duas crianças. Pensei logo em acidente, pois todo mundo aqui em casa é honesto. Mas aí eles me explicaram que elas estavam no mercado sozinhas. Eu não sabia que elas tinham ido para tão longe — lembra.
Segundo a avó das crianças, a família realmente veio para o Rio com medo do ex-marido da filha.
— Ela se separou dele, mas ele não aceitava muito bem isso. A gente fica com medo que o pior acontecesse. Viemos para a casa de um parente, mas como somos muitos, achei melhor alugar essa casa. Tudo que tenho foi doado pelos outros. A geladeira não funciona. Dormimos em colchões no chão. Eles são velhos e rasgados, mas aí coloco lençóis neles e fica tudo arrumadinho. O importante é que estamos todos juntos! — explica ela.Como trabalham há muito tempo na área de Guaratiba, os policiais pediram aos comerciantes empregos para a filha diarista e o genro de Maria do Rosário.
Esperançosa, a avó das meninas acredita que 2021 tem tudo para dar certo.
— As meninas conseguiram trazer comida para a nossa ceia de fim de ano. No Natal só tivemos arroz com feijão. Agora sonho com todo mundo empregado, uma geladeira funcionado e uma cama — concluiu ela, com a saúde debilitada por conta de problemas na vesícula.
A boa ação do sargento Alexandre e o cabo Giresse lhes rendeu elogio no boletim da Polícia Militar publicado nesta terça-feira.
Fonte: O Globo