Jornal Povo

Quase 6 mil detentos que já deveriam ter voltado à prisão estão em domiciliar no Rio por causa da pandemia

A ex-cabeleireira Adriana Almeida saiu da prisão para passar o Natal com a família e ainda não voltou Foto: Roberto Moreyra

A pandemia do novo coronavírus fez com que 5.636 detentos que cumprem pena no regime semiaberto fossem autorizados a permanecer em prisão domiciliar no Rio. As saídas dos detentos vêm ocorrendo desde março do ano passado, quando a Vara de Execuções Penais (VEP) deu sua primeira decisão sobre o tema. Cinco meses depois, em agosto, houve uma tentativa de iniciar o retorno dos presos nessa situação. No entanto, as dificuldades para planejar a volta de milhares de detentos para as cadeias do estado, evitando a contaminação daqueles que permaneceram atrás das grades, vem adiando esse retorno.

Em agosto, o juiz titular da VEP, Rafael Estrela, determinou que o retorno dos detentos começasse em 10 de setembro, terminando no dia 14 do mesmo mês. Mas a Defensoria Pública entrou com um habeas corpus e conseguiu suspender a determinação liminarmente.

Depois, essa decisão liminar foi confirmada pelo Tribunal de Justiça em 27 de outubro, mantendo a suspensão. Na ocasião, a 1ª Câmara Criminal determinou que a situação fosse novamente analisada pela VEP em 90 dias, prazo que se encerra no dia 24 deste mês.

Conhecida como Viúva da Mega-Sena, Adriana Ferreira Almeida é uma das presas que estão nessa situação. Condenada a 20 anos por ser mandante do assassinato do marido, a ex-cabeleireira saiu da cadeia no dia 24 de dezembro para passar o Natal com a família, e, por enquanto, não há data prevista para que ela retorne ao presídio.

No habeas corpus, a Defensoria Pública argumentou que a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) do Rio não havia apresentado um planejamento satisfatório para o retorno dos presos, por isso havia a necessidade de adiamento. Ainda segundo a Defensoria, no dia 6 de julho, a própria Seap admitiu, em processo administrativo, que não havia a possibilidade de disponibilizar locais para colocar em isolamento todos os presos que deveriam voltar.

Momento em que detentos do Presídio Evaristo de Moraes deixaram o local no dia 24 de dezembro Foto: Reprodução de vídeo

oordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado, Daniel Diamantaras de Figueiredo afirma ser a favor do retorno dos presos, mas desde que haja um planejamento para que isso ocorra. De acordo com o defensor, a secretaria ainda não apresentou de que forma pretende fazer essa volta:

— A defensoria não é contra (o retorno dos presos). O correto seria voltarem. Mas estamos numa situação excepcional. Diante da ausência de um plano de retorno, pela falta de estrutura e espaço, o melhor caminho é mantê-los em prisão domiciliar. Não há pesquisa alguma que mostre o aumento da criminalidade por causa dessa situação.

Ao EXTRA, a Seap informou que elaborou um novo protocolo no qual o retorno dos presos ocorrerá por ordem alfabética em um período de 30 dias. Mas ainda não há uma data determinada para o início. No último dia 13, a Defensoria Pública entrou com um pedido para que o juiz titular da VEP dê uma nova decisão sobre o retorno dos presos, conforme a determinação da 1ª Câmara Criminal, o que ainda não ocorreu.

Sem tornozeleira eletrônica

A decisão da VEP concedendo prisão domiciliar aos presos do semiaberto com direito a VPL não determinou o uso de tornozeleira eletrônica para monitorar os detentos.

A vara determinou que os beneficiados permaneçam em casa das 22h às 6h nos dias de semana. Em fins de semana e feriados, eles não podem sair. Apesar das regras impostas, porém, falta fiscalização. Questionada sobre as medidas para avaliar se os presos estavam cumprindo as condições impostas, a VEP informou que a fiscalização não é exclusividade sua, devendo ser realizada também por Seap, Polícia Militar, Polícia Civil e Ministério Público. A vara acrescentou ainda que os presos que descumprirem as condições estabelecidas perderão automaticamente o benefício e ainda vão regredir para um regime mais grave.

O traficante Marcio Cândido da Silva, o Porca Russa, foi beneficiado com prisão domiciliar em agosto. Condenado a 53 anos de prisão, ele estava preso desde 1992 e ganhou autorização para visitar a família. No entanto, a Polícia Civil tem informações de que Porca Russa continua sendo um dos chefes do tráfico da maior facção criminosa do Rio e tem atuado no tráfico de drogas. A 72ª DP (São Gonçalo) investiga a atuação do criminoso no Complexo do Salgueiro, localizado no município.

A VEP informou que não foi anexado no processo a informação no sentido de que Porca Russa permanecia no comando da maior facção criminosa do estado. Além disso, ele possuía bom comportamento carcerário e já havia cumprido mais tempo de pena do que o necessário para obter o benefício. No dia 13 de dezembro, a pena do traficante chegou ao fim e, com isso, ele não terá mais que voltar para a cadeia.

Porca Russa foi preso em 1992 e saiu antes do fim da pena Foto: Arquivo

Queda no número total de presos

Os quase 5,6 mil presos sobre os quais está sendo discutido o retorno para a cadeia são aqueles que cumprem pena em regime semiaberto e possuem autorização para deixar o presídio e visitar parentes, a chamada Visita Periódica ao Lar.

Além deles, estão em domiciliar por causa da pandemia 353 detentos do regime semiaberto que trabalham fora da cadeia e 807 do regime aberto, que podem sair das unidades prisionais durante o dia e só retornam para dormir. A VEP decidiu que esses presos ainda não precisam retornar.

O quantitativo de 6,7 mil detentos corresponde a 13% dos 52,5 mil presos que havia no sistema prisional do estado no início de março do ano passado, quando as saídas para cumprir pena em casa tiveram início. Atualmente, esse número reduziu para 43,4 mil.

Os presos com autorização para visitar a família não foram sendo liberados conforme iam obtendo a concessão do benefício. Eles precisavam aguardar as datas já programadas para as saídas para deixarem o presídio. A última delas foi no Natal.

Números

52,5 mil – Era o número de presos no Estado do Rio em março, no início da pandemia

43,4 mil – É a quantidade atual de presos no sistema prisional do Rio

6.796 – É o número de detentos em domiciliar por causa da pandemia

5.636 – São os presos no semiaberto no estado com direito a Visita Periódica ao Lar

353 – É o número de presos no semiaberto com direito a Trabalho Extramuros

807 – É a quantidade de presos no Estado do Rio no regime aberto

Risco de contaminação

Outros países – A libertação de presos em razão da pandemia foi realidade também em outros países. No Irã, ao menos 70 mil detentos ganharam liberdade temporária em março do ano passado. Em seguida, países como Estados Unidos, Canadá e Alemanha seguiram o mesmo exemplo.

Contra o contágio – No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez uma recomendação para evitar a contaminação em massa da Covid-19 no sistema prisional. Uma delas foi justamente a concessão de prisão domiciliar para presos dos regimes aberto e semiaberto. Além disso, foi recomendada a prorrogação do prazo de retorno ou adiamento de benefício de saídas temporárias.

Alerta da Fiocruz – O habeas corpus da Defensoria Pública citou ainda um parecer técnico elaborado pela Fiocruz, alertando sobre os riscos que havia com a entrada desses presos no sistema. No documento, os pesquisadores apontam que há a indicação de maior difusão da doença em comunidades. E, como a maioria dos presos vem dessas áreas, eles poderiam funcionar como vetores e introduzir o novo coronavírus em unidades prisionais nas quais a situação epidemiológica parece controlada. Dados obtidos pelo EXTRA via Lei de Acesso à Informação revelam que, de 16 de março a 16 de novembro, de 2020, 460 presos tiveram diagnóstico positivo para Covid-19. Desses, 16 morreram em razão da doença.