Jornal Povo

A cama da criança estava encharcada de sangue’, descreve defensora sobre visita ao Jacarezinho após massacre

Sangue por toda parte e centenas de cápsulas espalhadas em becos e vielas do Jacarezinho. O cenário foi descrito por defensores públicos e integrantes da área de direitos humanos que formaram uma comissão para ouvir moradores e visitar a favela na tarde desta quinta-feira, após a operação que resultou em 25 mortes, entre elas a de um policial civil, a maior marca já registrada no estado do Rio. A defensora pública do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos Maria Julia Miranda se disse chocada com o que viu e ouviu. Segundo ela, havia muitos “muros e portas cravejados de balas”, mas o pior de tudo foi vivenciar o trauma das pessoas que assistiram, possivelmente, a execuções no interior de duas casas:

Após confronto, cápsulas de munição de fuzil ficam caídas pelo chão
Após confronto, cápsulas de munição de fuzil ficam caídas pelo chão Foto: Fabiano Rocha

— Estivemos em um cômodo repleto de sangue e com partes de corpos. Parecia ser massa encefálica. Difícil de dizer. Uma senhora que conversou com a gente estava impactada com aquilo tudo. Na segunda casa que visitamos, havia uma criança de oito anos. Um rapaz foi executado no quarto dela. A família viu essa execução. A cama da criança estava encharcada numa poça de sangue, inclusive a coberta que ela se cobria. Essa menina está totalmente traumatizada. Nestes dois casos, provavelmente, ocorreu execução — afirmou Maria Júllia.

Tanto ela como colegas que estiveram na favela ficaram chocados com o que viram. O grupo chegou ao Jacarezinho às 13h30 e ouviu relatos de violações de domicílios e execuções de todas as pessoas que os procuraram no local. Maria Júlia ressaltou que, nas duas casas que a comissão visitou, as pessoas atingidas foram retiradas, caracterizando que o local do crime foi desfeito:

— Temos 24 pessoas chegando mortas ao hospital. Isso seria um forte indicativo que ocorreu desfazimento de cena de crime. A questão que se coloca é qual o critério que a Polícia Civil se utiliza para dizer que essa operação foi eficiente? Não vejo como uma operação com 25 mortos, incluindo um policial, seja considerada eficaz — questiona Maria Júlia.

Outro defensor público do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, Daniel Lozoya, também levanta dúvidas sobre a legalidade da ação:

— Em nenhum lugar do planeta uma operação com 25 mortos pode ser considerada como bem-sucedida. Não se pode falar em desastre, porque tantas mortes intencionais terem sido causadas não se trata de um acidente. Essa grande tragédia é importante para a conscientização de parte da sociedade sobre a inadmissibilidade desse modo de atuação das polícias — argumentou Lozoya. — Isso é histórico. Hoje (quinta-feira), tivemos uma operação policial com a maior letalidade da história, a maior chacina oficial. Antes, tínhamos chacinas por ações de grupos de extermínio. Agora, temos chacinas com aparato policial do estado. Está na hora de eles prestarem contas ao STF (Supremo Tribunal Federal).

O advogado Daniel Sarmento, que defende a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635/RJ, conhecida como ação das favelas, também criticou a atuação policial nas comunidades:

— Tem ocorrido o descumprimento sistemático do que foi estabelecido pelo STF, não só nas questões sobre a excepcionalidade das ações em favelas, como também sobre as cautelas que deveriam ser tomadas para proteção da população que vive nelas. Uma operação com 25 mortos, no mínimo faltou cautela, se não houve execução, o que seria mais grave ainda. É como se tivéssemos muitos Georges Floyds (homem negro morto por policial branco ajoelhado no pescoço dele, de forma que o impediu de respirar) morrendo num só dia. Vidas negras importam — concluiu Sarmento.