Hábito de publicar imagens de crianças na internet ganhou até nome: sharenting, junção dos termos em inglês share (compartilhar) e parenting (paternidade)
São Paulo – O álbum de fotografias, à mão sempre que uma visita surgia, mudou de forma e ganhou as redes sociais. Por lá, sobram fotos do bebê dormindo, comendo, brincando. O hábito de publicar imagens de crianças na internet ganhou até nome: sharenting, junção dos termos em inglês share (compartilhar) e parenting (paternidade). Na sociedade das plataformas, não demorou para que os “álbuns digitais” fossem vistos por centenas e até milhões de usuários.
A explosão de contas ligadas a bebês e crianças nas redes sociais durante a pandemia levanta o debate sobre o sharenting. Quase toda família faz e mesmo quem não tem filho se derrete quando vê fofuras dos bebês alheios nas redes. Em jogo está o direito das crianças à privacidade. Por outro lado, há a liberdade de expressão dos pais e a vontade de se conectar com os outros. O fenômeno fica mais complexo quando associado à propaganda de itens infantis.
Longe dos parentes, com um bebê nascido pouco antes da pandemia, a dona de casa Thainá Barbosa, de 32 anos, resolveu contar ao mundo os feitos de Rafael, de 2 anos. Criou um perfil só para ele no Instagram, que, no início, era restrito à família. “Eram só umas dez pessoas, mas você vai compartilhando, as pessoas vão seguindo, e gostando”, diz a mãe, que publica fotos dos passeios do menino, danças e roupinhas.
O perfil público pode ser visto por qualquer um – e o uso de hashtags como #digitalinfluencer permite encontrar a conta (e outras do tipo) na busca do Instagram. A mãe diz tomar cuidado para não publicar fotos do filho sem roupa, a fim de evitar que caiam em redes de pornografia. Mas não tem medo de ganhar alcance. “Se viralizar uma brincadeira, uma foto bonita, é fantástico”, diz ela, que aponta benefícios da troca de experiências com outras mães.
Para a psicóloga Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da SaferNet, o isolamento por causa da covid fez aumentar a prática de publicar fotos de crianças na internet – o que também faz crescer o volume de debates sobre o tema em entidades ligadas aos direitos da criança, à segurança na rede e entre juristas. “As crianças deixaram de conviver com parentes e uma das pontes para o contato foi as redes.” Juliana não vê a situação como um problema, a princípio, mas diz que o fenômeno pode esconder riscos.
Para a empresária Victória Xavier, de 29 anos, uma das consequências incontroláveis é viralizar – coisa que ela tenta impedir, na contramão da maioria. Dona de uma conta sobre maternidade com 47 mil seguidores, Victória posta fotos do filho de 1 ano acompanhadas de receitas e sugestões de brincadeiras. “Tenho cuidado de não produzir nada que acho que vai viralizar. Bebê gordinho, fazendo dancinha no TikTok, viraliza.”
Promover sorteios também é estratégia para atrair seguidores – e por isso Victória diz “passar longe”, apesar de aceitar fazer propaganda para marcas de mães empreendedoras. Ela recebe uma cota das vendas.
A ideia é manter um público engajado nos temas que ela publica – e não curiosos aleatórios, mas Victória sabe que o alcance da imagem do filho pode ir além do previsto. Nas redes, é comum a “pesca” de conteúdos por outras páginas, mesmo sem autorização. “Sempre que vou postar, penso: se sair do meu controle, vai me incomodar ou ao meu filho no futuro?”
A reflexão veta, por exemplo, fotos de momentos íntimos da criança, como birras e o desfralde. Também impede imagens de nudez. Mas, assim como acontecia quando o álbum de fotos impressas ganhava a sala de estar, nem sempre o que os pais veem como lindo na infância agrada aos filhos crescidos.
“Não tenho como ter certeza se ela vai ou não gostar do que escolho mostrar”, diz a fotógrafa Morgana Secco, de 38 anos, que alcançou 2,6 milhões de seguidores no Instagram após viralizar com vídeos da filha Alice, de 2 anos, famosa por gostar de ler e falar palavras difíceis. Alguns cuidados, diz, previnem embaraços futuros. “Nunca exponho situações em que a Alice esteja vulnerável, chorando ou que possa constrangê-la futuramente”, diz Morgana, que aposta na chance de inspirar outros pais para a importância de uma criação respeitosa.
Em redes como Instagram e TikTok, é comum encontrar vídeos de crianças “trolladas” pelos pais – expostas a brincadeiras como provar alimentos azedos ou filmadas enquanto se assustam. Adolescentes pedem aos pais para que não postem fotos de quando eram crianças porque dizem sofrer bullying.
As discussões podem chegar à Justiça quando pai e mãe discordam sobre a exposição do filho. O pai de um menino do interior paulista moveu ação contra a ex-mulher depois que ela publicou texto e foto da criança sem o aval dele. Para o pai, a publicação, sobre um distúrbio do filho, violou a privacidade da criança. Já a mãe disse que a postagem não foi ofensiva.
A decisão deu razão à mãe, mas ponderou que ainda é preciso achar a medida justa para preservar tanto o direito à liberdade de expressão dos pais quanto o direito à privacidade e proteção dos dados de crianças. “Não há regra fixa para definir quando direitos de personalidade das crianças estão sendo desrespeitados nas redes”, diz a advogada Isabella Paranaguá, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Piauí.
Não é o número de seguidores nem o fato de ter se tornado um “influencer digital” que indicam violação de direitos, mas situações que colocam a criança em risco, como negligência e opressão nas redes. Embora existam poucos processos de indenização por sharenting em que os filhos acionam a Justiça, o tema já faz parte de ações de divórcio e disputa de guarda.