Jornal Povo

Miséria cresce no Rio, e pintor busca sustento para a família no lixo

A cena se repete dia após dia. Um caminhão para pontualmente, às 9h, nos fundos de um supermercado na Lapa, região central do Rio, para recolher produtos que já passaram da validade e que, por isso, não podem mais serem ofertados aos clientes. Na calçada, um grupo de pessoas aguarda que as caçambas sejam abertas.

Antes de os resíduos serem despejados no caminhão, no entanto, elas reviram o lixo em busca de algo que, apesar de já estar vencido, possa ser reaproveitado — uma tentativa de matar a fome de quem não tem recursos para encher a despensa entrando pela porta da frente do supermercado.

A busca por comida no lixo é um dos retratos do aumento da miséria em todo o país no último ano. Uma pesquisa do Boletim Desigualdade nas Metrópoles, da PUC-RS em parceria com a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedOD-SAL), mostrou que o número de pessoas em situação de pobreza subiu para 19,8 milhões de pessoas nas regiões metropolitanas de todo o país.

Pessoas recolhem alimentos do lixo descartados por supermercado no RJ
Pessoas recolhem alimentos do lixo descartados por supermercado no RJ Foto: TheNews2 / Agência O Globo

Um dos que aparecem na foto que ilustra a reportagem é o pintor Ivanir Silva Moraes Junior, de 41 anos. Desempregado desde o início da pandemia, ele recorre aos produtos descartados pelo estabelecimento para alimentar a família.

Para especialistas, situação pode piorar

Para Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, embora o governo tenha tentado turbinar números do Auxílio Brasil, a fome e a miséria no país vão continuar avançando. Ele observa que o programa não foi desenhado para atingir as famílias mais vulneráveis, o cadastro está desatualizado, e não houve busca ativa pelas pessoas que estão em desamparo:

— O programa de assistência social que não chega nas famílias é um remendo. Não é por causa da Covid, não é a guerra na Ucrânia. Foi uma decisão política. A fome é uma decisão política, um misto de incompetência e ignorância. Essas imagens vão continuar e vão piorar, apesar do Auxílio Brasil. O governo desmobilizou os centros do Cadastro Único das famílias, com desinvestimento em políticas públicas de assistência durante quatro anos, retirou assistentes sociais que faziam a busca ativa. A pessoa que mora num lixão precisa ser buscada pelo Poder Público, e o governo tem que atuar na busca ativa. Mas isso acabou. Ela não tem um celular para fazer um cadastro on-line como quer o governo — pontua o especialista.

Afonso lembra ainda que, embora a inflação oficial tenha caído no mês de julho, o preço dos alimentos continua subindo fortemente, penalizando as famílias mais pobres.

— Os números de famílias com fome são muito maiores. Os preços dos alimentos continuam crescendo absurdamente. Só o óleo de soja subiu 250% nos últimos três anos. E o Cadastro Único das famílias em situação de insegurança alimentar está defasado. Muitas que precisam não estão lá. É uma tragédia completa, e o governo tentando remendar os problemas que ele mesmo causou para tentar salvar as eleições. É inaceitável ver pessoas morrendo de fome e catando comida no lixo — avalia Kiko Afonso.

Paola Loureiro Carvalho, diretora de Relações Internacionais e institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, lembra que no último pagamento do auxílio emergencial havia 35 milhões de famílias inscritas para receber o benefício e, no mês seguinte, somente 16 milhões foram atendidas pelo Auxílio Brasil. Para ela, a insegurança alimentar se espalha pela falta de controle do governo no pagamento àqueles que estão em situação de extrema pobreza:

— O programa é eleitoreiro e absolutamente excludente, além de mal focalizado e mal desenhado. Por isso, tem um conjunto tão grande que está excluído e não recebe o programa. A família pode ter cinco pessoas, dez pessoas ou duas pessoas e vai receber a mesma coisa. Quando o governo pagava R$ 600 de auxílio emergencial, a cesta básica em São Paulo custava R$ 491. Hoje, a mesma cesta custa R$ 741, ou seja, é menos produtos para dentro de casa — explica Paola.

Leia abaixo o relato de Ivanir

Fiquei sabendo por um vizinho que um caminhão passava de segunda a sábado, por volta das 9h, para buscar o que já tinha passado da validade num supermercado aqui na Lapa. Tem dias que são de 15 a 20 pessoas revirando o lixo em busca de comida. Sabe o que é isso? Necessidade. A gente já se conhece. Só umas duas ou três pessoas moram na rua. Os outros todos têm casa, mas pegam as coisas do caminhão porque estão desempregados e precisam levar comida para dentro de casa. Tem uma senhora que vem com os netos, uma “escadinha”, várias crianças.

Lá em casa somos dez pessoas. Estava vivendo debaixo do Viaduto Paulo de Frontin com minha família toda, mas apareceu uma vaga numa ocupação aqui no Centro e fomos para lá. Moramos eu, minha esposa, a Zuleica, meu sogro e meus dois cunhados, uma tia minha e meus três filhos: a Juliana, de 16 anos, o Luanderson, de 10, e a Raquel, de 17, além do filho dela, meu netinho, o Flávio, que tem 1 ano e 8 meses. Só quem recebe o Auxílio Brasil somos eu e meu cunhado, mas não é suficiente para o tanto de gente lá de casa.

Pintor e eletricista, Ivanir Silva Moraes Junior, de 41 anos, vai diariamente em busca de comida na área de carga e descarga de um supermercado na Lapa
Pintor e eletricista, Ivanir Silva Moraes Junior, de 41 anos, vai diariamente em busca de comida na área de carga e descarga de um supermercado na Lapa Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Pegamos de tudo no caminhão. Linguiça, carne, feijão, arroz, iogurte… Tudo que você puder imaginar eles jogam no lixo. Os produtos estão sempre fora da validade. Eu e meus filhos já comemos comida que estava há um mês vencida. Mas Deus olha lá de cima e não deixa que a gente passe mal. Se fosse uma pessoa com dinheiro comendo um negócio desses…

Hoje (terça-feira, dia 9) eu peguei 5kg de arroz, dois pacotes de açúcar, 400g de pó de café, linguiça calabresa e ovo de codorna. Fizemos aquele banquete em casa, foi uma alegria. Nunca conseguimos comer do bom e do melhor. Estamos agora por conta desse caminhão aí. As compras estão muito caras. Vai ver quanto está o litro do leite! Para a gente que é pobre, não tem como.

Já falaram em proibir de a gente pegar, mas tem funcionário que é tão humano que deixa porque sabe que a gente está passando necessidade. Se não fossem essas pessoas… Essa ajuda não quebra um galho, quebra uma árvore. Se não fosse isso aqui, a gente não estava passando nem necessidade, estava passando fome mesmo. Se um dia isso acabar, vai ter um montão de gente passando fome.

Teve uma senhora que veio com o filho, o neto e o sobrinho. Uma história parecida com a minha. Quando o caminhão chegou, ela começou a chorar. “Moço, estou chorando de emoção porque vou ter o que dar de comer para minha família. Quanto tempo que eu não comia uma carne, uma linguiça, um arroz e um feijão, só estávamos comendo angu”, ela me disse.

Desde que descobri isso aqui, agradeço muito a Deus e peço que ele nunca impeça que a gente tenha isso aqui enquanto a gente não consegue um emprego.

‘Eu fico sem, mas eles, não’

Lá em casa nós somos como uma equipe. À noite, saímos juntos com uma carrocinha para catar latinha. Mas mesmo assim não dá, porque a família é muito grande. Meu caçula vende bala e jujuba no sinal. Não me dá trabalho nenhum, está estudando, só me dá alegria. Ele fala para mim: “Pai, vou estudar bastante para ajudar o senhor, meu avô e nossa família toda”. O desejo dele é ser doutor.

Eu fico sem, mas eles não. A gente faz tudo pelos mais novos. Minha mais velha engravidou, mas o rapaz não assumiu. Sumiu, na verdade. Mas não deixo nada faltar para o meu neto. Amo ele demais da conta! Ele não come nada fora da validade, porque ele é um bebê. Então, às vezes eu fico sem, mas para ele não falta nada. Não vou dar leite fora da validade para ele, não deixo. O que a gente consegue de dinheiro, uso para comprar as coisas para ele: o leite, as fraldas.

“Saímos só com a roupa do corpo”

Sou pintor e eletricista, mas estou desempregado. Quando começou a pandemia, eu estava trabalhando numa firma com 485 funcionários, numa obra muito grande ali na Avenida Presidente Vargas, perto da Avenida Rio Branco. Já tinha quase dois anos de carteira assinada. A obra parou, e demitiram todo mundo. Foi aí que a situação piorou.

Está muito difícil conseguir trabalho na minha área. Só se for indicado por alguém. Hoje em dia as pessoas ficam com medo de contratar quem não conhecem. Um colega fez uns cartõeszinhos com o meu contato, e eu distribuí por aí. Mas se você não tiver alguém que diga “pode contratar ele que ele é bom, é de confiança”, fica difícil.

Currículo eu já coloquei em tudo o quanto foi empresa, estou esperando ver se aparece algo há mais de três anos, e nada. Pego qualquer coisa que aparecer: faxineiro, pintor, balconista. O negócio é não deixar faltar comida para os meus filhos.

Sou de São Gonçalo e morava no Morro do Bumba, em Niterói. Quando tudo aquilo aconteceu (em 2012, parte do local desabou, matando 54 pessoas e deixando mais de sete mil desabrigadas), minha casa foi condenada por conta das que eram próximas e caíram. Muita gente foi cadastrada para conseguir um lugar para morar, mas nunca conseguiu. Foi o que aconteceu com a minha família.

Saímos do Bumba só com a roupa do corpo e alguns documentos. Vivemos alguns anos em um abrigo lá no Centro de Niterói. Não deixavam faltar nada. Recebíamos muita doação de cesta básica, roupa de cama, mas nunca conseguimos uma casa. Há uns anos, falaram que não poderíamos mais viver lá. Foi quando fomos para rua. Viemos para o Rio e ficamos debaixo do viaduto Paulo de Frontin.

O que eu passei na rua… Já tentaram fazer covardia com meus filhos, meu tio. Não desejo nem para o meu pior inimigo, se eu tivesse. Perdi vários amigos com tuberculose, com Covid. É horrível. Na rua você está à mercê de tudo. Papai do céu que cuidava da minha família.