Jornal Povo

FAKE NEWS: ATORES SÃO CONTRATADOS PARA ‘QUEIMAR’ CANDIDATO EM PRAÇA

Operação Teatro Invisível — Foto: Reprodução

INVESTIGAÇÃO MOSTRA QUE “TRUPE DA FOFOCA” USAVA DISFARCES PARA ENGANAR ELEITORES NAS RUAS

A estratégia usada na campanha eleitoral em São João de Meriti (RJ) foi à moda antiga. Nada de redes sociais ou inteligência artificial. A tática envolvia influenciar o voto dos eleitores com atores disfarçados no mundaréu de gente espalhando notícias falsas contra um candidato nas ruas, no ponto de ônibus, na praça, no mercado e em bares.

“Ele só fala pra ganhar voto”, “diz que cuida da segurança, mas é miliciano” e “não trouxe nada pra cidade como deputado”. Esses eram os discursos armados divulgados pelos artistas de rua. Já sobre o candidato apoiado pela trupe, o papo era outro: “pode até roubar, mas faz” e “é bom de serviço” e “ataca ele por ser do mesmo partido do Bolsonaro”. Tudo isso era repetido aos quatro ventos e com gírias locais para enganar as pessoas.

Toda essa trama só veio à tona após um político prejudicado pelo esquema denunciar a malandragem. A partir daí, a Polícia Federal (PF) botou agentes disfarçados para seguir os atores eleitorais, que foram pegos no pulo — quatro pessoas foram presas em setembro durante as eleições. Agora, no início do mês, 11 suspeitos tornaram-se réus na Justiça Eleitoral. Eles são acusados de espalhar mentiras durante a campanha e de difamar adversários políticos.

Os artistas dividiram a atuação por bairros, de olho nos lugares onde a movimentação era maior. Até o hospital estava no radar do esquema. Cada abordagem era ensaiada previamente e seguia um roteiro afinado: a ideia era falar mal do adversário, espalhando fake news a rodo, e vender a imagem do seu candidato como tão imaculado quanto o santinho jogado no chão.

A investigação da PF aponta que os atores se misturavam entre os 441 mil habitantes de São João de Meriti, a 28 quilômetros do centro do Rio de Janeiro, e até falavam com um jeitinho local para ninguém desconfiar. 

Depois de cada conversa, a “trupe da fofoca” anotava tudo: quem poderia votar no candidato deles, quem mudava de opinião e quem desistia de votar no concorrente. Se o desempenho fosse bom, poderia até rolar um bônus no pagamento.

Uma estratégia mais ousada chegou a ser cogitada pelos envolvidos no esquema: usar mulheres que trabalhavam em boates da cidade para chamar a atenção de quem não acompanhava a política de perto. Mas a ideia não foi para frente, porque acreditavam no potencial dos atores de rua.

Operação Teatro Invisível: atores são treinados para espalhar fake news sobre candidato adversário — Foto: Reprodução

“TEATRO INVISÍVEL”

Era assim que o grupo era conhecido porque se camuflava em espaço público sem que as pessoas percebessem. A encenação rolou em ao menos 13 cidades do Rio de Janeiro, entre as eleições de 2016 e 2024: Araruama, Belford Roxo, Cabo Frio, Carapebus, Guapimirim, Itatiaia, Mangaratiba, Miguel Pereira, Nova Iguaçu, Paracambi, Paraty, São João de Meriti e Saquarema. A investigação resolveu se concentrar no caso de São João do Meriti — que foi mais assombroso.

Proposta de orçamento do ‘Teatro Invisível’ — Foto: Reprodução

GRUPOS DE WHATSAPP

A atuação da trupe fica evidente em mensagens trocadas entre os suspeitos em grupos de WhatsApp nomeados como Equipe Teatro Invisível 2024 e Teatro/Coordenação. Os diálogos foram obtidos pelos investigadores. Um deles mostra como o grupo fabricou e espalhou uma notícia falsa sobre uma conexão inexistente entre o candidato visto como opositor, Léo Vieira (Republicanos), e o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018. Após enviar um print manipulado, um dos investigados orientou como difundir a fake news boca a boca nas ruas: “Dá uma lida nessa notícia aí e bota pra fofoca”.

Em outro diálogo encontrado pela PF, uma das integrantes da equipe fez uma análise sobre a distribuição da localização dos atores nos bairros. “Essa área não tem muita movimentação”, afirmou. “Quando é no Centro, a gente consegue um número melhor”, acrescentou. Os deslocamentos dos artistas eram monitorados em um mapa com anotações em post-its coloridos, apreendido pela PF.

Conversas sobre repasses entre a “TRUPE DA FOFOCA” — Foto: Reprodução

O valor recebido por ator, segundo um documento encontrado pela PF com um dos investigados, podia chegar a R$2.500, com mais R$2.200 de ajuda de custo para alimentação (café da manhã, almoço e jantar), transporte e outros gastos durante a abordagem. Já o coordenador dos artistas receberia R$5 mil. Com isso, um pacote de seis integrantes do grupo, junto com o supervisor, ficaria por R$33.200 por mês.

 

A investigação não aponta a origem dos recursos utilizados para financiar as encenações. A empresa de um dos réus recebeu R$406 mil da campanha do deputado estadual Valdecy da Saúde (PL) para fornecer materiais impressos, como bandeiras, adesivos e santinhos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em nota, o candidato favorecido pelas encenações afirmou que “não figura como indiciado ou envolvido nos autos do processo que apura prática de crimes eleitorais” e que está “à disposição da Justiça para prestar qualquer esclarecimento”.

Valdecy ficou em segundo lugar nas eleições de São João de Meriti, com 33,37% dos votos válidos. O também deputado estadual Léo Vieira (Republicanos), que foi atacado nas ruas pelo Teatro Invisível e denunciou o esquema para a PF, foi eleito prefeito em primeiro turno, com 50,39%.