Jornal Povo

CHACINA DE ACARI: ESTADO BRASILEIRO É RESPONSABILIZADO PELO DESAPARECIMENTO FORÇADO DE 11 JOVENS EM 1990

Em 26/07/2010, uma passeata na Avenida Brasil relembrou os 20 anos da chacina de Acari — Foto: Reprodução/Fabio Rossi

CORTE INTERAMERICANA DECLAROU QUE ‘O ESTADO NÃO REALIZOU UMA INVESTIGAÇÃO SÉRIA’ SOBRE O CRIME

Nesta quarta-feira, o Estado brasileiro foi responsabilizado pelo desaparecimento forçado de 11 jovens na Chacina de Acari, crime cometido em julho de 1990. A sentença foi expedida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que apontou ainda falhas nas investigações do crime e dos homicídios de duas familiares dos desaparecidos. O julgamento do crime pela Corte começou em outubro do ano passado.

Ao analisar o caso e a prova dos autos, a Corte concluiu que eles foram desaparecidos forçadamente por agentes estatais. No documento divulgado, a Corte advertiu que após 34 anos do crime, e “apesar dos trabalhos de busca e as exigências de justiça das mães das vítimas, através do movimento ‘Mães de Acari’, os fatos permanecem em absoluta impunidade, desconhecendo-se o paradeiro de seus seres queridos ou os possíveis perpetradores dessa grave violação de direitos humanos”.

O Estado brasileiro também foi responsabilizado pela Corte pelo tratamento discriminatório das “Mães de Acari” e outros familiares das vítimas desaparecidas, durante o trabalho de buscas e demandas por justiça. O Tribunal concluiu que o país violou ainda o artigo 5.1 da Convenção Americana, que prevê que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.”

Entre as medidas de reparação estabelecidas, estão a emissão das certidões de óbitos das 11 vítimas, adoção de medidas administrativas e legislativas para tipificar o crime de desaparecimento forçado, e a continuidade das investigações. Além disso, fica estabelecido a obrigação da realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, a criação de um memorial no bairro de Acari, e um estudo sobre a atuação das milícias e grupos de extermínio no Rio de Janeiro.

Em 17/02/1993, bombeiros procuram os corpos dos 11 moradores de Acari sequestrados e mortos — Foto: Reprodução/Fernando Maia

RELEMBRE O CASO

Em 26 de julho de 1990, homens encapuzados, dizendo-se policiais, invadiram uma casa num sítio na Estrada Fim da Picada, no distrito de Suruí, em Magé. Depois de revirar o imóvel em busca de joias e dinheiro, os criminosos levaram com eles oito adolescentes e três adultos que moravam em Acari e tinham ido passar o fim de semana no lugar. Apenas a dona do sítio e um neto conseguiram escapar, porque pularam a janela e se esconderam da quadrilha.

Os reféns foram obrigados a entrar numa Kombi. Três dias depois, o carro foi encontrado carbonizado e sujo de sangue. Um ano após o crime, o Serviço Reservado da PM concluiu que o crime fora praticado por PMs e policiais civis. Mas, como os corpos não foram encontrados, o caso nunca passou da fase do inquérito por falta de provas.

Segundo a investigação, três dos desaparecidos tinham envolvimento em assaltos e deviam dinheiro de propina a policiais. Eles teriam sido sequestrados por policiais do 9º BPM integrantes de um grupo chamado Cavalos Corredores.

As tentativas de encontrar os cadáveres incluíram uma decisão da Justiça, em abril de 1999, autorizando escavações no Cemitério de Mongaba, em Piabetá. A permissão foi pedida depois que uma parente de uma das vítimas recebeu um telefonema anônimo, indicando um novo lugar onde os desaparecidos teriam sido enterrados.

Sem respostas para o paradeiro de seus filhos, as mães fundaram o grupo “Mães de Acari”, cobraram as instituições e investigaram o caso por conta própria, levando suas denúncias para outros fóruns e organizações no Brasil e em outros países. Elas chegaram a ser recebidas pela primeira-dama da França, Danielle Miterrand. A metodologia de atuação criada por elas se repete até hoje, quando familiares de vítimas de violência do Estado buscam esclarecimentos na Justiça.

Velório de Edmeia Silva Euzébio no Cemitério de Irajá, em janeiro de 1993. Líder das Mães de Acari, ela foi assassinada à luz do dia, no centro do Rio, depois de coletar pistas sobre o desaparecimento do filho, uma das onze vítimas da Chacina de Acari — Foto: Jorge William

ASSASSINADA À LUZ DO DIA, LÍDER DAS MÃES DE ACARI BUSCAVA PISTAS SOBRE JOVENS DESAPARECIDOS

Em 15 de janeiro de 1993, a mãe de Luiz Henrique da Silva Euzébio (de 16 anos), Edmeia da Silva Euzébio, e sua sobrinha Sheila da Conceição, foram assassinadas na Estação de Metrô da Praça 11, na cidade do Rio de Janeiro. Os homicídios ocorreram pouco tempo depois de Edmeia ter declarado, perante uma autoridade judicial, sobre a participação de policiais no desaparecimento dos 11 jovens. O processo penal iniciado por esses homicídios culminou com a absolvição dos quatro policiais militares acusados, em abril de 2024, pelo 1º Tribunal do Júri do Rio.

Os absolvidos são os policiais militares Eduardo José Rocha Creazola, Arlindo Maginário Filho, Adilson Saraiva Hora e o motorista Luis Claudio de Souza, que na época trabalhava para a prefeitura do Rio. O Ministério Público pediu a absolvição deles por insuficiência de provas.

Edmeia teria sido morta por ter conseguido novas informações que poderiam localizar os adolescentes de Acari, um deles seu filho. O caso, que chegou a ser arquivado, sofreu uma reviravolta em 2011, após o depoimento de uma nova testemunha. Ela contou que a reunião para matar Edmeia teria ocorrido no gabinete do então deputado estadual Emir Larangeira, na Alerj. Em 2022, a Justiça entendeu que o crime havia prescrito e o ex-deputado não foi julgado.

O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania disse que participou da notificação da sentença da Corte Interamericana e que trabalhará para a implementação da decisão histórica. O Ministério informou ainda que se compromete a assegurar que episódios como este jamais se repitam.

A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos informou que elaborou uma proposta de regulamentação da lei estadual, que está em tramitação interna, para que seja possível proceder com o pagamento da indenização. O órgão disse ainda que está acompanhando o caso da chacina de Acari desde o início.