Desde a sua criação em 2010, o grupo Peneira vem experimentando trabalhos com teatro, performance, poesia e cinema, tendo como fio condutor o imaginário popular dos moradores do Rio de Janeiro. Foi diante desses estímulos que os diretores Priscila Bittencourt, Alex Teixeira e Luiz Fernando Pinto criaram o método Fabulações do Território, que conecta essas linguagens com referências etnográficas, do Cinema Verdade, Teatro do Oprimido, Teatro de Vizinhos e Teatro Documentário, onde moradores e artistas ficcionam a partir das memórias e do cotidiano de determinada comunidade.
Para inaugurar o método, o grupo elegeu a Rua Joaquim Silva – localizada entre os Arcos da Lapa e a extinta Praia Areias de Espanha, onde hoje está a Avenida Augusto Severo – como local de pesquisa, e por lá espalharam cartazes e faixas convidando os moradores a participarem de um processo artístico de três meses. O resultado é o espetáculo itinerante ‘Sorte ou Revés’, que tem o texto assinado pelos três diretores, e fica em cartaz entre os dias 2 e 24 de fevereiro, sempre aos sábados e domingos, às 19h30, na própria rua.
– Ao fabular sobre o real, os sujeitos re-formulam sua existência no mundo, realizando o exercício de escolha daquilo que consideram relevantes para permanecer em suas narrativas de vida. Considerando esta premissa, o método Fabulações do Território consiste na criação de processos artísticos, com e para uma comunidade específica, a partir do estímulo de diferentes linguagens. O trabalho coletivo em torno da memória e oralidade, proporciona a aproximação com a localidade e possibilita a descoberta de histórias e documentos que estão para além da literatura oficial. Os participantes se deslocam do lugar de espectador e assumem um papel de protagonistas da obra a ser criada – comenta Priscila Bittencourt.
Após o chamado, se juntaram ao grupo de vizinhos uma equipe composta por atores, performers, músicos, cineastas, arquitetos, poetas e bailarinos, que ao longo dos encontros trabalharam num processo artístico-comunitário através da hibridização de linguagens. A direção optou por buscar na ficcionalização do dia a dia da Rua Joaquim Silva, possibilidades estéticas pautadas em atuações coletivas. Já a movimentação é atravessada por referências de obras do pintor Cândido Portinari e pela musicalidade do bairro da Lapa.
– A dramaturgia abre espaço para a ressignificação da paisagem urbana como possibilidade ficcional, mística e fantástica. Histórias do cotidiano da rua são misturadas as literaturas criadas em torno do imaginário da Lapa e vivências dos próprios participantes do espetáculo. Referências como os romances “Lapa” e “Noturno da Lapa”, de Luís Martins, “Carmen”, a biografia de Carmen Miranda, escrita por Ruy Castro e a “Antologia da Lapa”, que reúne textos de escritores que frequentaram o bairro, serviram como elementos para a construção do texto – revela Luiz Fernando Pinto.
‘Sorte ou Revés’ traz a tona questões relacionadas a micropolítica, quando um grupo de moradores da Rua Joaquim Silva se junta para realizar um bingo, e é surpreendido pela chegada de um pesquisador em busca de informações sobre a cantora Carmen Miranda, e o anúncio de um ciclone que se aproxima da cidade. Neste contexto, o público é convidado a jogar o bingo com os atores, enquanto são reveladas histórias sobre personagens da Lapa e suas riquezas. Passado e promessas de futuro se encontram entre as pedras cantadas.
– Mais do que o resultado de um processo artístico, o espetáculo é uma reflexão sobre uma rua turística que poderia estar localizada em qualquer grande cidade do país, se não fossem suas particularidades. Ali acontece há mais de 40 anos o bingo de cartela da Dona Marlene, crianças brincam no entardecer e moradores e comerciantes reinventam seus modos de existir diante da forma como o Estado se faz presente – conta Alex Teixeira.
Da carvoaria ao hotel para rapazes solteiros
A paisagem urbana da Joaquim Silva contempla dois importantes cartões postais da cidade. Em uma ponta, onde começa o espetáculo, estão os Arcos da Lapa, por onde passa o bondinho de Santa Teresa, e lá pela metade da rua localiza-se a Escadaria Selarón, com seus 215 degraus, e mais de 2 mil azulejos de cerca de 60 países. Entretanto, outros ambientes que às vezes passam despercebidos pela maioria das pessoas, como botequins, pensões, sindicatos, cortiços, depósitos, hotéis para rapazes solteiros e até uma carvoaria, serviram como elementos propulsores para a criação do espetáculo.
Nesse perímetro de menos de um quilômetro moraram figuras como Carmen Miranda, Manuel Bandeira, Madame Satã, Jacob do Bandolim e Chiquinha Gonzaga, e por ali também circularam Noel Rosa, Sinhô, Iberê Camargo e Cândido Portinari. Esse mesmo espaço foi marcado por diferentes ciclos históricos e transformações. Do final do século XIX para o XX, passaram a coexistir dois ambientes na Rua Joaquim Silva: Um diurno de característica familiar e um noturno, que com o tempo tornou-se um dos atrativos mais importantes da cidade. A partir de 1915 alguns casarões foram ocupados por cabarés. Nascia então, uma nova Lapa: de crimes, de boemia desenfreada, de malandragem, de sambistas e desordeiros perigosos. Logo em seguida veio o processo de gentrificação da região central com as reformas urbanísticas de Pereira Passos, o status de bairro da noite, e anos mais tarde a decadência. Após os anos 90 muita coisa mudou, e houve um redescobrimento do bairro através das manifestações populares que ali aconteciam, como o samba, o hip hop e a criação da Escadaria Selarón pelas mãos do pintor e ceramista chileno Jorge Selarón.
Sobre a Peneira
A Peneira é um grupo multicultural criado no Rio de Janeiro em 2010, e que busca possibilidades estéticas em suas variadas ações no campo da indústria criativa. Atuando através da combinação de linguagens, propõe processos artísticos e estratégias de viabilização, mobilização e metodologias propulsoras para transformações culturais e sociais.
Entre os projetos realizados, destacam-se as peças ‘Urucuia Grande Sertão’ (2011), ‘Mercadão de Madureira’ (2013), ‘O Provinciano Incurável’ (2016), ‘Yaperi_aquilo que flutua’ (2017), o espetáculo de variedades ‘Sarau do Escritório’ (2013), o cineclube ‘Cine Vila’, além de festivais, como: ‘Festival Passeio em Cena’, ‘Festival O Passeio é Público’ e ‘Baile de Gala do Sarau do Escritório’.
Ficha técnica:
Direção e texto: Priscila Bittencourt, Alex Teixeira e Luiz Fernando Pinto
Dramaturgia: Priscila Bittencourt, Yassu Noguchi, Alex Teixeira, Luiz Fernando Pinto e Paulo Sérgio Kajal
Supervisão: Hugo Cruz
Direção musical: Maurício Maia
Músicos: Calebi Benedito, Fernando Katullo, Jon Pires e Mauricio Maia
Direção de movimento e preparação corporal: Kamilla Neves
Preparação vocal: Ledjane Motta
Cenografia: Domitila Almenteiro
Iluminação: Jon Thomaz
Figurino: Camila Loren
Mapping e videoinstalação: Flávia Moretz, Handerson Oliveira e Priscila Bittencourt
Elenco: Amanda Corrêa, Cristina Telles, Domitila Almenteiro, Júlia Cabo, Michele Lima Pereira, Waleska Adami, Yassu Noguchi, Alex Teixeira, Calebi Benedito, Luís Cláudio Arcos, Marcus Ferreira, Paulo Sérgio Kajal, Pedro Uchoa, Tiago Nascimento e Victor Santana
Fotografia: Victor Coutinho
Design: Fabiano Pires
Pesquisa: Priscila Bittencourt, Alex Teixeira e Luiz Fernando Pinto
Produção: Talita Magar
Assistência de produção: Katleen Carvalho
Realização: Peneira
Serviço:
Sorte ou Revés
Local: Rua Joaquim Silva, s/nº – Lapa (ponto de partida na esquina com a Rua Evaristo da Veiga)
Datas: 2 a 24 de fevereiro (sábados e domingos)
Horário: 19h30
Informações: (21) 98122-5488 / [email protected]
Ingressos: Colaboração consciente
Duração: 90min
Gênero: Comédia
Classificação indicativa: Livre
Capacidade: 80 pessoas